Segue a primeira parte da história do laudo do massacre, que hoje faz 20 anos.
É uma narrativa dos bastidores da perícia. Creio que será útil a todos os colegas.
É também uma espécie de desabafo pelo que passei há 20 anos…
Amanhã ou na quinta envio a segunda e última parte.
Abraço.
A HISTÓRIA ESCRITA NAS PAREDES
UMA SUCINTA APRESENTAÇÃO DO LAUDO DO MASSACRE DO CARANDIRU
1 – UMA BREVE DESCRIÇÃO DO P-9 E SEUS PRESOS
Muito se escreveu sobre o episódio do “Massacre da Detenção”. Muitas histórias foram baseadas em relatos de sobreviventes, de funcionários da Casa de Detenção do Carandiru, de jornalistas que tiveram acesso nos dias seguintes ao massacre ao P-9, policiais que fizeram a recolha dos presos, funcionários da enfermaria, etc.
Esta é uma história real, de quem esteve lá dentro, recebeu informações fidedignas e observou com detalhes o que se passou pelos vestígios deixados pela ação.
Aqui, uma curiosidade interessante: a denominação oficial do presídio era Casa de Detenção “Prof. Flamínio Fávero”, brilhante perito médico legista, discípulo de Oscar Freire, ex-diretor da Faculdade de Medicina da USP e Professor de Medicina Legal do Mackenzie, falecido em 1982. Sua inscrição no CRM era a de número 001.
Além das inúmeras histórias, muita fantasia se escreveu a respeito dos presos: que eram os mais perigosos do país, todos assassinos com vários homicídios nas costas, matadores de criancinhas, estupradores, etc. Esta versão ajudou a criar na sociedade uma repulsa pelos detentos e auras de heroísmo à ação realizada. Longe de querer fazer uma defesa de criminosos, garantimos que a verdade não é esta. O Pavilhão Nove (P-9) do Carandiru abrigava presos chamados “virgens”, ou seja, primários, que haviam cometido pela primeira vez qualquer tipo de crime: estelionato, furto, roubo, tráfico, homicídio, etc. Muitos deles não haviam sido sequer julgados, estavam apenas “detidos”.
Ainda hoje muitas pessoas condenam o laudo que “desnudou” a ação realizada e acham que 111 mortos foram poucos. Estes não estiveram lá dentro, não viram e, provavelmente, não têm qualquer religião. Satisfazer-se com o massacre de 111 presos indefesos, como uma vingança por ter sido vítima de algum crime revela a face mesquinha de muitas pessoas. Nós, como tantos outros, já fomos vítimas de assalto mais de uma vez, sentimos medo sim, principalmente se os bandidos descobrissem nossa identidade, não pudemos reagir porque estávamos acompanhados e nem por isso pudemos acobertar o que ocorreu lá dentro. Uma coisa é enfrentar bandidos na rua, dispostos a matar ou morrer, outra coisa, muito diferente, é matar presos desarmados, encurralados dentro de suas celas. Uma verdade é inegável, e as estatísticas criminais comprovam: se antes do laudo da detenção a PM matava mais de 200 por mês só na Capital, em média, apenas dois meses depois da divulgação do laudo este número caiu para cerca de 35. Hoje se mantém por volta de 60, com a população quase dobrada em relação a 1992. Não há dúvida que houve uma mudança de paradigma. Hoje a PM respeita os direitos humanos, apesar de muita gente ainda combater os métodos utilizados.
Por outro lado, o que restava a um perito fazer ante aquela situação? Esconder o que viu e analisou, e assim falsear a verdade? Não foi para isso que criaram a perícia, mas sim para estabelecer a verdade dos fatos através da prova material.
O P-9 era composto por cinco pavimentos (o térreo é considerado o primeiro pavimento) e as celas se distribuíam do segundo ao quinto pavimento. A estrutura arquitetônica correspondia a um quadrado com um pátio central e as celas ficavam dispostas nos quatro lados do quadrado, frente a frente e separadas por um corredor perimetral. A numeração das celas obedecia a um código alfanumérico de cinco caracteres, sendo o primeiro o número do pavilhão, o segundo, o número do pavimento; os dois seguintes a ordem numérica a partir do acesso do pavimento, no sentido horário, e o último, uma letra “E” ou “I”, antecedidas por um hífen, indicava se a cela era voltada para a região externa do P-9 (“E”) ou para o pátio interno (“I”).
Nunca ficou claro como eram distribuídas as celas para os presos, mas houve a informação que eles mesmos decidiam quem iria habitar qual cela (para eles chamadas de “casa”). Havia dentro de cada Pavilhão uma espécie de “Comissão” que negociava com as autoridades do presídio sobre as questões a serem resolvidas e eram responsáveis pela distribuição das celas. Foi esta “Comissão” que, com um surpreendente espírito de colaboração (coisa rara, criminosos colaborando com policiais) prestou a maior parte das informações aqui relatadas. Muitos destes informes, por não serem relevantes à perícia ou confiáveis, na época, não foram para o laudo, mas serviram de embasamento para deduzir o que de fato provocou a situação.
Naquela época, não havia ainda uma “organização criminosa” propriamente dita, mas existiam certos grupos que dominavam o P-9, impondo horários, distribuição de cigarros (que era a principal “moeda” deles), impunham castigos aos que saíam da linha, decidiam sobre os “jurados de morte”, etc. Entenda-se: os “jurados de morte”, que não eram poucos, não estavam numa espécie de “corredor da morte” aguardando seu destino, mas eram aqueles que haviam cometido falta grave contra a organização do grupo e poderiam até morrer se não se desculpassem e pagassem pelos seus “crimes”. Estes ficavam em celas especiais, sozinhos (solitárias), até terminarem sua “condenação”. Morreriam somente se fossem considerados “criminosos rebeldes”, o que raramente acontecia. Era o início dos Tribunais do Crime. E de uma organização criminosa, cujo embrião foi desenvolvido após o massacre. Ali dentro, havia uma facção mais dominadora, recém-formada, chamada “Serpentes Negras”, que correspondia a uma associação de líderes de grupos, mas não havia então uma verdadeira organização e não agiam fora do presídio. Dominavam pela força. Os grupos menores se organizavam pelas mais diversas afinidades: os homicidas e os matadores de policiais formavam um grupo de poucos, mas barulhentos presos porque se diziam os mais “corajosos” – portavam uma tatuagem com um punhal encravado numa caveira (depois ficamos sabendo que muitos casos que eles contavam eram fantasiosos, apenas queriam se sobressair), os traficantes formavam outro grupo, assim como os religiosos, os torcedores de determinado time, os estelionatários (que eram considerados os intelectuais dos presos e redigiam petições, pedidos, solicitações, reivindicações, etc.), e outros. Calcula-se que os quase 1.800 presos eram distribuídos por cerca de 30 grupos. Enfim, era uma sociedade à parte do mundo externo, com suas próprias leis, advogados e juízes.
Esses grupos, embora precisassem uns dos outros, eram muitas vezes rivais e brigavam pelos mais diversos motivos: pela posse de pontos de distribuição de cigarros, pela produção e distribuição de bebidas artesanais, de sabonetes, de TVs, de perfumes, de mulheres, de drogas – somente maconha, pois os presos não permitiam a entrada de qualquer outra droga na época, segundo eles disseram – e muitas outras coisas. Mas conviviam sem grandes traumas graças ao entendimento entre os líderes.
E foi justamente um desentendimento entre dois destes líderes que, por um motivo fútil, levou à morte os 111: uma briga por causa de uma arbitragem duvidosa do jogo de futebol numa final de campeonato interno. Pelo menos, foi esta a versão contada para a perícia e confirmada pela Comissão de Presos e de Disciplina. Um membro de um grupo foi ferido gravemente com estiletes pelo membro de outro grupo e começou a gritaria e perseguições, que não pôde ser evitada pelos carcereiros, pois se estendeu por todo o P-9.
Chamaram, então, a PM. E tudo começou.
Osvaldo Negrini Neto
Perito Criminal aposentado, autor do laudo do Massacre da Detenção.