A Polícia Civil do Estado de São Paulo está adoecendo e morrendo aos poucos. Para oferecer um trabalho minimamente digno à população, os profissionais estão acumulando funções e trabalhando em longas e, muitas vezes, ininterruptas jornadas. E essa situação se agravou nos últimos anos, quando o deficit chegou a alarmantes 34% do efetivo. Prova maior desse processo que está matando nossos policiais é o aumento significativo do número de suicídios, que mais do que dobrou nos últimos quatro anos.
Os dados revelados pela Academia de Polícia Civil de São Paulo, durante a Palestra de Prevenção ao Suicídio proferida pelo professor Roberto Santos da Silva, são tristes e mostram que, enquanto em 2014 foram registrados 4 suicídios, em 2018 esse número saltou para 10. Durante esse período, 33 policiais tiraram a própria vida.
Nós, do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (SINDPESP), estamos denunciando essa situação há anos. E pouco, ou nada, foi feito para mudar essa realidade. Nossa classe continua arriscando a vida diariamente sem nenhum respaldo por parte do governo. Durante minhas visitas aos delegados de todo interior do Estado, colhemos relatos de policiais que sofrem doenças como depressão e síndrome de burnout. E, pior, há muitos casos de companheiros que, por não terem acesso a atendimento de saúde adequado, atentaram contra a própria vida.
A situação é tão grave que o suicídio está matando mais os policiais que os confrontos com criminosos, conforme revelam dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública ao SINDPESP. Em São Paulo, o número de policiais civis que tirou a própria vida é 150% maior que o índice dos que foram mortos por bandidos durante o trabalho.
Nas condições ideais, a rotina policial já é estafante. Estudos científicos feitos por institutos de pesquisa de vários países mostram que nossa profissão é a mais propensa ao suicídio. Mas quando o profissional tem que atuar sob forte pressão, com os salários mais baixos do Brasil, com uma completa falta de condições de trabalho e estrutura, muitas vezes sem equipamentos de segurança, o resultado é um aumento nos números de suicídios e afastamentos decorrentes de doenças relacionadas ao estresse.
E o pior de tudo é que o atendimento psicológico e psiquiátrico oferecido para as carreiras policiais é muito tímido. O policial está sozinho na difícil luta contra a depressão.
As péssimas condições de trabalho já levaram o Sindicato a recorrer à Organização Internacional do Trabalho (OIT) para denunciar a situação da Polícia Civil. Agora, nossa luta é para que o governo amplie o serviço de atendimento psicológico voltado para os policiais que atuam em todo o Estado. É preciso desenvolver campanhas específicas para a classe e é preciso democratizar o acesso a serviços de saúde.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 90% dos suicídios poderiam ser evitados. A palavra-chave é a prevenção. E disso a Polícia Civil está carente. É urgente que o Estado cuide daqueles que estão trabalhando à exaustão e colocando suas vidas em risco diariamente para cuidar de toda a população.
*Raquel Kobashi Gallinati é presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo
Câmara já tentou criminalizar quem paga por sexo e legalizar a cafetinagem, mas nada avançou
Ao longo dos últimos anos as casas de prostituição se espalharam pela cidade de São Paulo. Como não são nem legalizadas nem fiscalizadas, não há números oficiais. Nas últimas semanas a CBN mapeou 47 desses lugares funcionando às claras, com a conivência da Prefeitura e relato de propina para policiais. Há ainda o recrutamento de menores de idade. A Câmara dos Deputados já tentou criminalizar quem paga por sexo e legalizar a cafetinagem, mas nada avançou.
Prostíbulo visto por dentro. Imagem enviada por Whatsapp por um dos cafetões. Foto: Reprodução
POR PEDRO DURÁN (pedro.duran@cbn.com.br)
Você já pensou em ganhar oito reais para fazer um show de sexo ao vivo pela câmera do seu celular ou 15 reais para fazer sexo com alguém?
Com a vista grossa das autoridades, os prostíbulos se espalharam em São Paulo e passaram a operar em sistemas que beiram o profissionalismo. Até mesmo os menores, que tem uma portinha pequena e uma escada que leva a uma sala apertada no segundo andar, estabelecem regras rígidas e oferecem contrapartidas variadas às garotas de programa.
Descobrimos o canal de comunicação entre os cafetões e as garotas. É a última página de um jornal popular de empregos e concursos que é vendido por R$ 1,50 nas bancas da cidade. Com circulação semanal, ele tem entre 70 e 80 anúncios das casas para as prostitutas por edição, o que rende um faturamento de R$ 18 mil nessa única página. Ou seja, lucram com a prostituição, o que também é apontado como crime por especialistas.
Usamos esse canal e encontramos cafetões de casas grandes e pequenas do ABC paulista, do litoral Sul e principalmente da cidade de São Paulo. Pelo Whatsapp eles mandaram as regras de cada lugar para as prostitutas que decidirem frequentar os locais.
“Oi, tudo bem, falamos aqui da Av. Santo Amaro, tá?”
“Qual que é seu nome? O meu nome é Pâmela, tá? Vou estar te mandando por escrito como funciona a casa”
“Meu maior horário de movimento é após as quatro da tarde, que é a hora que os homens saem do serviço”
“Os nossos clientes são mais de média idade e velhos”
“O valor do programa de uma hora é cento e oitenta reais, cem da menina. Meia hora é noventa, cinquenta da menina, pagamento diário, tem comissão de bebidas…”
“Eu não aceito nem lingerie nem biquini. O salto é necessário, tá? É obrigatório, mas você pode colocar uma calça, um body, um top, shortinho jeans, um vestidinho, como você se sentir melhor”
“Uma maquiagem não muito agressiva, uma maquiagem leve, com batom…”
“Sabe, a casa é uma família, eu trabalho com 15 a 20 meninas”
“A gente fornece camisinha, uma toalha por semana pra garota”
“Caso você venha de metrô é só me ligar que eu busco no metrô Penha”
“E tá sem foto aqui no perfil, a gente trabalha com entrevista”
“O mais importante aqui é simpatia e educação, quanto mais simpática você for, mais dinheiro você faz, tá bom?”
Foi assim, por meio de um anúncio desses, que encontramos um cafetão chamado Marcos, que administra dois prostíbulos na Zona Sul da cidade. Conversamos com ele, como se fossemos uma jovem de 15 anos, e ele admitiu que explora adolescentes: sugeriu caprichar na maquiagem e mentir a idade.
“Tem que ver sua aparência. Se você aparentar ser bem menor que 18 anos fica complicado. Nem eu pego e nenhuma outra casa pega, entendeu? Mas nada que, dependendo aí, nada que uma maquiagem bem carregada, resolva, entendeu? Isso aí a gente dá um jeito. Mas eu tenho que ver mais ou menos como é sua fisionomia, entendeu? Igual eu te falei. […] Aliás, casa nenhuma vai falar. Vai falar que você tem quinze anos? Nem toca no assunto. Eu ainda pego dependendo da aparência da garota, se ela aparentar ter mais idade. E ter corpo também”, diz ele.
O desembargador Antonio Carlos Malheiros, consultor de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, explicou que o disfarce pra esconder a idade torna o crime ainda mais grave e que a falta de fiscalização e de ações coordenadas e a negligência da sociedade faz com que esse tipo de conduta seja comum em qualquer lugar do planeta.
“Não é só São Paulo. É Brasil inteiro e mundo inteiro também. São Paulo tem muito, mas nós percebemos isso pelo Brasil afora, América Latina e mesmo na Europa, viu?. É uma coisa realmente horrível que nos aflige mundialmente. É algo incrível, é algo horroroso de vermos nossas adolescentes sendo exploradas dessa maneira”, diz.
Se pagar propina para agentes públicos, fazer vista grossa na fiscalização ou explorar adolescentes e crianças sexualmente são práticas condenadas de Norte a Sul, a prostituição e a cafetinagem são bem mais polêmicas. Prova disso são os projetos na Câmara dos Deputados, que já tentaram criminalizar quem paga por sexo e legalizar a cafetinagem.
Em 2003, o então deputado Fernando Gabeira, que na época era do PT do Rio de Janeiro, propôs excluir os artigos 228 e 229 do Código Penal. Na prática, se fosse aprovada, a lei não mais criminalizaria os donos de prostíbulos, cafetões ou pessoas que comandam e detêm as casas de prostituição.
A ideia avançou e foi amplamente debatida, mas acabou sendo arquivada em janeiro de 2011. Dois meses depois, o deputado republicano goiano João Campos apresentou um projeto na contramão da ideia de Gabeira. O plano dele era criminalizar os clientes dos prostíbulos, com um a seis meses de cadeia para quem pagasse por serviços de natureza sexual.
O relator do projeto deu um sinal verde para ele na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara há três anos, mas até agora não foi colocado em votação pra avançar. Tá na gaveta.
Enquanto a lei não muda nem pra cá nem pra lá, o Código Penal delimita quem pode ser punido.
É crime: tirar lucro da prostituição de outras pessoas, manter um prostíbulo ou atrair prostitutas para fazerem programas. A pena vai de 1 a 14 anos de cadeia dependendo da soma dos crimes.
Mas não é crime: pagar por sexo ou oferecer serviços sexuais com o próprio corpo.
Uma lei que o desembargador Guilherme Nucci critica. Autor dos livros “Prostituição, Lenocínio e Tráfico de Pessoas” e “Crimes contra a Dignidade Sexual”, ele é um dos maiores especialistas nessa área no Brasil.
“Totalmente ultrapassada. O Brasil vive tempos mais contemporâneos e não é mais hora de se pensar em ficar punindo favorecimento de prostituição. Os países do mundo que regulamentaram a prostituição e reconheceram que isso é uma atividade como outra qualquer andam muito mais de cabeça erguida dentro de uma honestidade. Porque os Estados Unidos, por exemplo, que proibem a prostituição – inclusive individual, é crime – tá cheio de prostituição lá. É uma completa hipocrisia da socidade querer punir uma atividade que existe, as pessoas usam e a sociedade vê, mas acaba não fazendo nenhum julgamento efetivo em cima disso. Então eu defendo, sim”, diz.
Todos os episódios da ‘Série Sem Disfarce’ estão no site da CBN e no nosso aplicativo, pelo podcast CBN em Série.
A série de reportagens culminou na abertura de uma investigação pela Corregedoria da Polícia paulista, para apurar o pagamento de propinas, em um inquérito instaurado pela unidade criminal do Ministério Público e no pedido de uma CPI para apurar as denúncias na Câmara dos Vereadores.
#4 – ‘Sem Disfarce’: Para ter alvará, prostíbulos dizem que são até oficina mecânica
Para obter algum tipo de licença na prefeitura de São Paulo, os cafetões e cafetinas mentem sobre a finalidade do lugar que administram. Manter uma casa de prostituição é crime previsto no código penal, por isso eles dizem que são bares, restaurantes, hotéis, sauna e até loja de material de construção e oficina mecânica. Quase metade dos 47 estabelecimentos mapeados pela CBN nem sequer tem licença de funcionamento. Isso é o que mostra o quarto episódio da série ‘Sem Disfarce’. A prefeitura disse que vai vistoriar todos eles.
Prostíbulo sem licença de funcionamento exibe cartaz com show erótico na fachada. Foto: Reprodução/Google Street View
POR PEDRO DURÁN (pedro.duran@cbn.com.br)
A profissão de ‘prostituta’ tem um código próprio no Ministério do Trabalho pra recolher impostos. Também pode ser chamada de ‘garota de programa’, ‘meretriz’, ‘messalina’, ‘mulher da vida’ ou ‘trabalhadora do sexo’. E no caso de homens, ‘michê’.
Mas explorar os lucros desse tipo de profissional é crime – desde a década de 1940. Há um crime específico pra quem mantém um prostíbulo. São dois a cinco anos de prisão e multa.
É justamente por isso que os cafetões e cafetinas usam mentiras pra conseguir licenças de funcionamento, como se tivessem outros estabelecimentos.
Entre os locais mapeados pela CBN, encontramos de tudo. 21 dos 47 locais não tem sequer licença de funcionamento, especialmente os que ficam em bairros da Zona Oeste de São Paulo, como Lapa, Pinheiros e Pompeia.
13 deles se passam por bares, especialmente nos bairros de Santana, na Zona Norte, e Santo Amaro, na Zona Sul.
Um diz que é restaurante, outros quatro têm alvará pra comércio de alimentos. Três têm licença pra hospedagem, como se os quartos fossem para hóspedes. No mapeamento da CBN encontramos ainda um lugar com licença pra comércio diversificado, outro que diz que é uma loja de materiais de construção, um que tem licença pra sauna e banho e até um prostíbulo que se passa por oficina mecânica.
Foi em cima dessas infrações administrativas que a delegada Rosmary Correa, que foi subprefeita do bairro de Santana, na Zona Norte, montou uma operação em 2017 com apoio da Polícia Militar.
“Para o delegado poder realmente fazer um flagrante de exploração de lenocínio e tudo mais, você tinha que bater e abrir os quatros e entrar. E eu acompanhei todas essas diligências junto com eles. Essa experiência foi de ver lugares horríveis, lugares, vamos dizer, sem nenhum tipo de limpeza, sujeira mesmo e umas pessoas que se prestavam a ir para esses lugares”, conta.
Na prática, um estabelecimento sem licença leva autos de infração e multa e tem 30 dias pra se regularizar com normas de segurança e higiene. Se não se adequar em 90 dias, o lugar pode ser interditado. Se a licença de funcionamento é diferente da atividade do comércio de fato, ela é imediatamente cassada. Como não existe licença pra prostíbulo, o imóvel pode ser emparedado com blocos ou tubos de concreto. A prefeitura de São Paulo diz que vai fiscalizar todos os locais mapeados pela CBN.
Especialista no assunto, o desembargador Guilherme Nucci explica que além de cometerem crimes por manter o prostíbulo, os cafetões acabam fomentando uma rede com os anúncios dos lugares.
“As pessoas têm lucrado permitido a propaganda em revista, anúncio em jornal, internet, sites que vivem disso. Sites eróticos que vendem a prostituição cobram. E são pessoas que favorecem a prostituição. Então se formos levar isso aí literalmente, todo esse pessoal que lucra em torno da prostituição estaria incurso no Código Penal. Qualquer pessoa que ganhasse um níquel da prostituição alheia seria criminoso”, diz.
No capítulo de amanhã da série Sem Disfarce, as estratégias das autoridades para desmontar o mercado da prostituição em São Paulo
#5 – ‘Sem Disfarce’: MP e Corregedoria da Polícia abrem inquérito para investigar prostíbulos; vereadores querem CPI
A corregedoria da Polícia de São Paulo abriu uma investigação para apurar as denúncias do pagamento de propina a policiais para liberar o funcionamento de prostíbulos na capital paulista. A unidade criminal do Ministério Público também abriu um inquérito. Na Câmara Municipal, um pedido de CPI foi protocolado. O quinto episódio da série ‘Sem Disfarce’ mostra que não é de hoje que as autoridades tentam desmontar a rede de prostituição paulistana, mas ela acaba voltando com o tempo.
Gerente de prostíbulo marca consumação de cliente em comanda. Foto: Pedro Durán/CBN
POR PEDRO DURÁN (pedro.duran@cbn.com.br)
A série de reportagens da CBN teve como consequência duas frentes de investigação abertas. E uma terceira encaminhada.
Na unidade criminal do Ministério Público, o promotor José Reinaldo Guimarães Carneiro mandou instaurar um inquérito para que a Polícia Civil de São Paulo apure como a rede de prostíbulos continua em atividade com a conivência e até propina para autoridades públicas.
“Pra que a própria Polícia Civil agora, debruçada sobre esses elementos que estão nos autos possa aprofundar essa investigação, para que as pessoas identificadas nessas circunstâncias possam posteriormente ser responsabilizadas pela Justiça Criminal”, diz.
Como a reportagem colheu relatos que dão conta do pagamento de propina para policiais civis, a Corregedoria da Polícia também abriu um inquérito. O caso está nas mãos do Delegado de Polícia Evandro Lopes Salgado.
O duelo pra fechar as portas de prostíbulos em São Paulo não vem de agora… Há 12 anos, o então prefeito Gilberto Kassab interditou alguns prostíbulos na cidade. Anos depois, em 2012, pelo menos cinco deles voltaram a abrir repaginados.
Na gestão de João Doria como prefeito, em 2017, outros 12 foram lacrados ou interditados. Agora, a CBN mostra que a poucos metros de onde eles funcionavam, há hoje cinco prostíbulos em operação.
Com base no mapeamento dos 47 prostíbulos feito pela CBN, o vereador Adilson Amadeu, do PTB, coletou assinatura de outros 31 vereadores e protocolou um pedido de CPI na Câmara Municipal.
“Nós já temos um primeiro passo que a imprensa ofereceu de 47 prostíbulos, que funcionam num sistema grande aqui na capital. Quando falar 47, eu acredito que em uma semana nós vamos levantar mais 200. Vai muito na unha que você vai trabalhar levando todos os órgãos junto. Pessoal de subprefeitura que lá deu a liberdade de eles estarem com as portas abertas trabalhando, Polícia Militar, Polícia Civil e Guarda Civil Metropolitana. Aí sim você vai combater o crime”, diz.
A Câmara Municipal de São Paulo tem duas CPIs em atividade e pode instalar até cinco. Os líderes partidários devem avaliar a sugestão de Amadeu na próxima terça.