BRASIL – QUEM PEGA UM TOSTÃO É LADRÃO; QUEM ROUBA MILHÃO É BARÃO.

1 milhão de reais
é o valor do apartamento de cerca de 500 metros quadrados no bairro do Morumbi (à esq.), onde Di Rissio mora. À direita, o prédio pelo qual o delegado se interessou. A cobertura de 660 metros quadrados estava sendo negociada por 1,5 milhão de reais.

O xerifão atrás das grades
Com salário de menos de 7000 reais( observação: menos de 5000 reais) e patrimônioque inclui apartamento de 1 milhão, dois automóveisJaguar, jóias e uma coleção de relógios Rolex,o delegado André Di Rissio está preso acusadode corrupção, formação de quadrilha e tráfico deinfluência, entre outros crimes. Boa-pinta, culto, ótimo orador e sempre vestido com ternos de grife, o delegado André Luiz Martins Di Rissio Barbosa conquistou, em dezesseis anos de carreira, a admiração de grande parte de seus colegas. Um dos coordenadores do Departamento de Administração e Planejamento da Polícia Civil – responsável por aprovar o orçamento da corporação, inclusive verbas extras para compras de armas e equipamentos –, foi eleito em janeiro, aos 42 anos, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo. É o mais jovem presidente da história da entidade. No dia 29 de junho, essa boa imagem começou a ruir. Acusado de integrar uma quadrilha que liberava mercadorias importadas ilegalmente no Aeroporto de Viracopos, em Campinas, Di Rissio foi preso pela Polícia Federal. Na semana passada, surgiram novas denúncias contra ele. Escutas telefônicas autorizadas pela Justiça apontaram uma suposta influência em ações do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic) e de delegacias de Santos, impedindo a apreensão de mercadorias e a prisão de suspeitos.
O Ministério Público Federal investiga depósitos feitos em uma conta não declarada em Miami, nos Estados Unidos. Pesam contra Di Rissio acusações de formação de quadrilha, sonegação fiscal, falsidade ideológica e posse ilegal de armas de fogo, entre outros crimes. Além da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, o delegado está sendo investigado pelo Ministério Público Estadual.
Figurinha fácil de ser encontrada em restaurantes estrelados dos Jardins, Di Rissio tinha um estilo de vida mais compatível com o de um playboy do que com o de um delegado de polícia que ganha menos de 7 000 reais por mês. Até ser preso, morava com a mulher, Mylene Mendes Abrahão, também delegada, e uma filha de 4 meses em um apartamento de alto padrão no Morumbi, avaliado em 1 milhão de reais. Segundo as gravações grampeadas, ele estava negociando a compra de um outro, por 1,5 milhão de reais. Quando foi detido, policiais apreenderam na garagem de seu prédio dois Jaguar blindados – que custariam, juntos, de acordo com o Ministério Público Federal, 300 000 reais –, quatro relógios importados de grife (30 000 reais cada um), dois sacos de supermercado abarrotados de jóias, 30 000 reais em dinheiro e duas autorizações de transferência para uma conta em Miami – cada uma no valor de 20 000 dólares. “Estou estarrecido”, afirma o delegado e deputado estadual Romeu Tuma Júnior. “Era uma liderança nova, que havia conquistado o respeito da classe.”

Claudio Rossi
Setor de cargas de Viracopos: Di Rissio foi uma das dezesseis pessoas presas na Operação 14 Bis
A principal plataforma de Di Rissio para vencer a eleição à presidência da associação dos delegados era o combate aos baixos rendimentos da categoria – São Paulo paga o segundo menor salário do país para um delegado em início de carreira (3.000 reais), à frente apenas do estado da Paraíba. Ataques aos secretários de Segurança Pública e da Administração Penitenciária eram comuns. “Temos um amador na Segurança e outro incompetente na Administração Penitenciária”, chegou a dizer, após as ações do PCC em maio. Na festa que marcou sua posse, no hotel Maksoud Plaza, estiveram presentes diversas personalidades, como o senador Eduardo Suplicy e os deputados federais Luiz Eduardo Greenhalgh e José Eduardo Martins Cardozo, todos do PT. As fotos do evento foram publicadas na revista Caras.
Outro alvo de sua língua ferina era o Ministério Público. “Os promotores não podem investigar crimes porque a Constituição não permite”, disse Di Rissio. “Quando fazem isso, denigrem a imagem da polícia.” Ironicamente, é o Ministério Público que a cada semana descobre novas falcatruas do delegado. “Pela proximidade que os policiais civis têm dos criminosos, é muito fácil eles se deixarem corromper”, afirma o coronel José Vicente da Silva, consultor na área de segurança e ex-secretário Nacional de Segurança Pública. “O que mais surpreende é que as denúncias recaiam sobre uma pessoa que se vangloriava de sua postura ética.”
Ormuzd Alves
Comissão na negociação de Robinho: em gravação do ano passado, Di Rissio diz que ajudaria na venda do jogador para o Barcelona
O Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado do Ministério Público Estadual (Gaeco) ouviu vinte CDs com conversas grampeadas nos telefones de Di Rissio, que resultaram em 190 páginas de transcrições. O que mais chamou a atenção dos procuradores é que em nenhuma ligação ele fala sobre operações policiais ou assuntos de interesse da associação de delegados. Em um ano inteiro de escutas – de julho do ano passado a junho deste ano –, só tratou, de acordo com o Gaeco, de ações à margem da lei. Na operação da Polícia Federal batizada de 14 Bis descobriu-se que Di Rissio servia de ponte entre empresários, despachantes e o delegado Wilson Roberto Odornes, então titular da delegacia da Polícia Civil dentro de Viracopos. Era Di Rissio quem oferecia propina para que fiscais da Receita Federal e funcionários do aeroporto fizessem vista grossa para cargas irregulares e notas subfaturadas (entre 10% e 20% dos valores reais). Os auditores da Receita Federal cobravam de 10 a 14 dólares por quilo de mercadoria liberada ilegalmente. A Polícia Federal, no entanto, ainda não conseguiu estimar em quanto essa quadrilha lesou os cofres públicos. Dezesseis pessoas foram presas, entre elas Di Rissio e Odornes. Para intermediar as negociações em Viracopos, Di Rissio ganharia cerca de 50.000 reais fixos por mês e participaria dos lucros das operações.
As escutas flagraram ligações de Di Rissio pedindo favores a delegados do Deic e a policiais em Santos. Essas conversas mostram que o delegado playboy também negociava relógios. “Tá chegando o Dia das Mães. O que você tem pra mim desta vez?”, diz a um intermediador. “Um Rolex, 14 000”, ouve como resposta. Os preços eram sempre passados em dólares. Di Rissio chegou a mostrar interesse em pelo menos quinze modelos de relógio, principalmente das marcas Rolex e Cartier. Outra negociação flagrada pelos grampos foi de uma cobertura dúplex de 660 metros quadrados na Rua José Maria Whitaker, no Morumbi. “Achei um de 1,5 milhão…”, conta a corretora. “Pô, meu apartamento tem 500 metros quadrados, não vou sair daqui para um lugar pior”, diz o delegado. A corretora esclarece: “Não, esse é dúplex. Tem 660 metros quadrados”.
Em uma das ligações, gravada em julho do ano passado, ele garante estar ajudando na negociação entre Robinho, então jogador do Santos, e o Barcelona, da Espanha. Dando a entender que era conselheiro do Santos (o que ele não é), o delegado combinou uma comissão caso a venda fosse fechada. O negócio não se concretizou – Robinho foi para o Real Madrid –, e ele ficou sem a bolada. Torcedor santista fanático, o delegado costumava ir aos estádios assistir aos jogos do time da Vila Belmiro. Filho do desembargador Eduardo Antonio Di Rissio Barbosa, do Tribunal de Justiça, Di Rissio era aparentemente o policial exemplar. Teve forte atuação no ABC paulista. Foi delegado em Santo André e São Caetano, professor de direito em uma universidade da região e secretário de Assuntos Jurídicos de Diadema. Em 2003, completou o mestrado em direito constitucional na PUC, onde depois entrou no programa de doutorado.

Fotos Nilton Fukuda/Folha Imagem/reprodução Revista Caras
Presidente da associação dos delegados: Di Rissio em seu gabinete (no alto) e durante a cerimônia de posse, em fevereiro, com o deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh (à esq.), a mulher, Mylene, e o pai, Eduardo Barbosa, em reprodução da revista Caras
Di Rissio está detido provisoriamente na Penitenciária da Polícia Civil General Ataliba Leonel, na Zona Norte. Ele aguarda o julgamento de um habeas corpus. Segundo seu advogado, Antônio Claudio Mariz de Oliveira, o delegado nega todas as acusações. Mariz de Oliveira reconhece que muitas vezes amigos e conhecidos solicitavam os préstimos de Di Rissio. “Mas sempre dentro da absoluta legalidade”, afirma. “Di Rissio teria outras rendas, como dono de uma empresa de consultoria na área de segurança e contra-espionagem industrial.” Sua mulher, Mylene, receberia ainda uma mesada do pai, fazendeiro. Um dos advogados criminalistas mais conhecidos do país, com um currículo que inclui a defesa da empresária Eliana Tranchesi, do ex-prefeito Celso Pitta e de Suzane von Richthofen, a estudante que mandou matar os pais, Mariz de Oliveira costuma cobrar entre 50.000 e 100.000 reais por um habeas corpus. No caso de Di Rissio, entretanto, afirma que abriu uma exceção. Aceitou atender o delegado de graça. Não precisava. A julgar pela vida que leva, seu novo cliente não teria dificuldade para lhe pagar os honorários.

A doce vida de Di Rissio
Robson Fernandes/AE
300 000 reaisé quanto valem, juntos, os dois carros blindados importados da marca Jaguar que foram encontrados na garagem do delegado

4relógios avaliados em cerca de 30 000 reais cada um foram apreendidos pela Polícia Federal. Di Rissio comprava diversos modelos Rolex e Cartier
Divulgação
50 000 reaisé quanto Di Rissio receberia por mês para liberar mercadorias importadas ilegalmente no Aeroporto de Viracopos
2sacolas de supermercado abarrotadas de jóias foram levadas do apartamento do delegado

Fotos Mario Rodrigues
1 milhão de reaisé o valor do apartamento de cerca de 500 metros quadrados no bairro do Morumbi (à esq.), onde Di Rissio mora. À direita, o prédio pelo qual o delegado se interessou. A cobertura de 660 metros quadrados estava sendo negociada por 1,5 milhão de reais

“Tem piscina?”
Em ligações grampeadas pela Polícia Federal, André Di Rissio negocia a compra de um apartamento no Morumbi
Corretor: Eu consegui uma cobertura pra você, vai estar saindo mais ou menos por uns 1,8 milhão de reais, mais ou menos.Di Rissio: Quantos metros? Corretor: Em torno de 400 e poucos metros. Quatrocentos metros. Di Rissio: É pequeno. Preciso de um maior. Você acha que eu vou sair do meu conforto?
Dias depois, uma outra corretora liga
Corretora: Tem um apartamento por 5 milhões. Di Rissio: Não. Corretora: Também achei um de 1,5 milhão… Di Rissio: Filha, você sabe. Você me conhece. Pô, meu apartamento tem 500 metros quadrados, não vou sair daqui para um lugar pior. Se não for melhor, esquece. Corretora: Não, esse é dúplex. Tem 660 metros quadrados. Di Rissio: Ah. Tem piscina? Corretora: Sim. Di Rissio: Então arranja uma visita para a gente conhecer (o apartamento em questão é a cobertura do edifício acima).

Mãozinha para os amigos
Di Rissio conversa com um presoacusado de sonegar imposto
Di Rissio: Você está sendo levado pro Deic por quem? Quem tá aí com você? Preso: É o investigador de polícia. Di Rissio: Deixa eu falar com ele. Um momentinho, por favor. Alô, aqui é o doutor André Di Rissio, da delegacia-geral. Tá muito ruim a situação aí? Investigador: Não, doutor, nada de horrível, não. Di Rissio: Tá bom. Você resolve pra mim? Investigador: Com certeza, doutor.

“Tá abortada a operação”
Um advogado pede ajuda a Di Rissio paraum cliente alvo de uma blitz da polícia
Advogado: Diz que tão levando todo o estoque de bebidas deles lá. Di Rissio: Estão apreendendo o estoque de bebidas? Peraí…
Di Rissio fala com um delegado do Deic. Pouco depois, tinha a solução
Di Rissio: Você quer a má ou a boa notícia?Advogado: A má primeiro.Di Rissio: A diligência tá legalizada. A boa é que eu liguei pro delegado. Acabou, é zero a zero. Tá abortada a operação.

Negócios em família
A mulher de Di Rissio, a delegada Mylene Mendes Abrahão, pede ao marido que interceda pelo irmão dela
Mylene: André, meu irmão vai ser ouvido. Liga lá para o delegado para ficar macio para ele lá. Di Rissio: Tá bom, não se preocupa.
O desembargador Eduardo Di Rissio Barbosa, pai do delegado, pede que o filho ajude um advogado amigo dele. Preocupado com a possibilidade de o telefone estar grampeado, Di Rissio tenta encerrar a conversa
Di Rissio: Pai, você vive me alertando pra não falar por telefone. Depois de velho eu tenho que ficar preocupado contigo. Você já falou isso. Vai contar de novo a história? Vou pedir pro Salata (segundo a Polícia Federal, o advogado Luiz Silvio Moreira Salata) ligar pra ele pra agradecer. Agora, pelo amor de Deus, fique mais inteligente. Você não vê que a bruxa tá solta aí? Eduardo Di Rissio Barbosa: Não se preocupe comigo que eu sou vitalício. Di Rissio: A única coisa vitalícia que você tem é a sua mulher.
* Colaborou Sandra Soares

E HÁ QUEM O CONSIDERE UM MÁRTIR; UM GRANDE LÍDER DOS DELEGADOS DESTE ESTADO.

PARA MIM, ATÉ QUE DEMONSTRE O CONTRÁRIO, APENAS UM CHEFE DE QUADRILHA!
E LOGO PODERÁ SER PROMOVIDO POR MERECIMENTO…
JÁ QUE CONDUTAS COMO AS DESSE SENHOR, APARENTEMENTE, NÃO SÃO CONSIDERADAS INDIGNAS OU DESLEAIS.
E NINGUÉM SE OFENDERÁ EM TÊ-LO COMO PROFESSOR…
DE CRIMES E CADEIA CONHECE PELA PRÁTICA!
É UM DELEGADO “VIP”.

Bandido sangue bom

Publicada em: 11/12/2002 às 23:32
E por falar em favela


Bandido sangue bom
Marcelo Monteiro

 

Cara de Cavalo inspirou obra de Hélio Oiticica
Cara de Cavalo inspirou obra de Hélio Oiticica

 

Houve um tempo em que os bandidos mais temidos do Rio de Janeiro roubavam caminhões de leite e gás que se aventuravam nas favelas do subúrbio carioca para distribuir a mercadoria roubada entre seus moradores. A cena foi reconstituída recentemente no longa-metragem Cidade de Deus. No filme do diretor Fernando Meirelles, co-dirigido por Kátia Lund, os assaltantes do Trio Ternura aparecem distribuindo bujões de gás nas ruas do conjunto habitacional da Zona Oeste. Era início dos anos 60.

Contemporâneo de Mineirinho e Lúcio Flávio, Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, era adepto dessa ‘estratégia’ Robin Hood de roubar dos ricos para dar aos pobres. O último romântico dos bandidos cariocas morou até os 16 anos na antiga favela do Esqueleto, onde hoje existe a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), no Maracanã (Zona Norte).

 

“Cara de Cavalo era um garoto levado mas tinha muita consideração com os moradores. O padrinho dele morava lá e ele vivia no Esqueleto. Quando a polícia estava por perto, ele sumia. Mas sempre aparecia novamente”, lembra a dona-de-casa Cleonice Pereira da Silva, de 63 anos, que viveu no Esqueleto até 1962, quando a comunidade foi extinta e ela então se mudou para a Vila Kennedy, em Bangu.

 

Cara de Cavalo tinha ligações com o jogo do bicho e atuava principalmente na região da Grande Tijuca. Ele começou garoto realizando pequenos furtos e vendendo maconha na Central do Brasil. Depois se tornou cafetão na zona do meretrício. Apesar da fama, Cara de Cavalo não tinha em seu currículo ações espetaculares ou assassinatos cruéis. Era bem diferente dos bandidos figurões de hoje em dia. Ganhava dinheiro fácil percorrendo os pontos do bicho e recolhendo sua comissão. Isso até 1964, quando matou com um tiro de sua Colt 45 o temido detetive de origem francesa Milton de Oliveira Le Cocq, despertando a ira dos policiais da época. Cara de Cavalo foi então caçado implacavelmente durante quatro meses, entre maio e agosto de 64. Cerca de 2 mil homens de todas as delegacias da cidade participaram da operação. Os detalhes da perseguição foram acompanhados diariamente pela imprensa carioca.

 

Cara de Cavalo tinha apenas 23 anos quando foi morto, com mais de cem tiros, no seu esconderijo perto de Cabo Frio, na estrada para Búzios. Entre os policiais que presenciaram os últimos momentos do bandido estavam Hélio Vígio, ex-diretor da Divisão Anti-Seqüestro, e Sivuca (depois eleito deputado estadual com o lema “bandido bom é bandido morto”). Segundo o laudo pericial da época, o bandido foi atingido por 52 tiros, sendo 25 somente na região do estômago. O corpo de Cara de Cavalo foi coberto com um cartaz com o símbolo da caveira com duas tíbias cruzadas e a inscrição EM (leia-se: Esquadrão da Morte).

 

O repórter policial Luarlindo Ernesto, que trabalhou muitos anos na editoria de polícia do Jornal do Brasil, e que acompanhou de perto a caçada ao bandido, declarou certa vez em entrevista ao livro Reportagem policial (Faculdade da Cidade, 1998):

“Outro assunto interessante foi o Cara de Cavalo, um bandido sem nenhuma importância que entrou no noticiário policial. Foi um mito construído pela imprensa, um bandido muquirana, tinha uma mulher na zona, assaltava ponto de bicho em Vila Isabel e fumava uma maconhazinha, não era um bandido de expressão. O azar dele foi que o banqueiro de bicho chamou os amigos policiais e pediu para eles darem um sumiço no cara. Os policiais foram dar uma dura e, naquela afobação de prendê-lo, um policial matou um colega. Botaram a culpa no Cara de Cavalo e isso motivou uma caçada implacável ao jovem bandido, que tinha apenas 23 anos. (….)

Depois da perseguição, ele ficou vivo apenas mais um mês ou dois. Lembro que, durante essa caçada, um dia fui com outro repórter, o Oscar, para o Morro do Juramento. Lá, consegui através de outro bandidão da época, o Murilão, chegar até o Cara de Cavalo. Mas o bandido queria mil cruzeiros para falar. Era muito dinheiro. No caixa da Última Hora só havia 600 contos, queria um milhão. Nada feito e ele aproveitou e fugiu, desaparecendo. Continuamos no caso, conseguimos botar uma espécie de empregada doméstica na casa da mãe dele. A mulher interceptou uma carta do Cara de Cavalo, localizamos o endereço do remetente, fomos atrás novamente. Chegamos a falar com ele, mas o bandido não quis nada. Numa dessas visitas, a polícia nos seguiu, foi lá e matou o Cara de Cavalo. A perseguição toda demorou um mês e meio, com mais baixas entre a polícia. Lembro do Le Cocq e do Perpétuo de Freitas, policial que foi morto por um colega nessa perseguição ao Cara de Cavalo”.

Um ano após a morte de Le Cocq nascia no Rio a Scuderie Le Cocq, formada por policiais militares e civis que queriam vingar a morte do detetive. Um de seus presidentes foi o delegado Luiz Mariano, que anos depois afirmou ter dado o primeiro tiro em Cara de Cavalo. A versão capixaba dos escudeiros, que foi montada em 1984 e se tornou sinônimo de grupo de extermínio, é acusada de quase dois mil homicídios, alguns deles envolvendo políticos do Espírito Santo.

Conforme documento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), “as investigações revelaram a existência de uma associação criminosa que se dedica à prática de narcotráfico, controle de jogos ilícitos e homicídios; e cuja estratégia de ação consiste em controlar o funcionamento das instituições públicas, subverter a hierarquia funcional nas corporações policiais civil e militar, garantir a impunidade dos responsáveis pela prática do crime e substituir-se às instituições públicas”.

 

A morte de Cara de Cavalo voltou a ser destaque na imprensa carioca quando o artista plástico Hélio Oiticica, que usou a marginalidade social, a repressão política e a revolta individual como tema de suas obras nos anos 60, homenageou o bandido com dois de seus trabalhos mais polêmicos. O primeiro foi um bólide (caixa de madeira, plástico ou vidro) com uma foto do bandido caído numa poça de sangue. Depois, criou um estandarte com a reprodução da foto e a inscrição: “Seja marginal, seja herói”.

 

Cara de Cavalo e Hélio Oiticica freqüentaram juntos rodas de samba em favelas cariocas. Sobre o amigo, Oiticica escreveu: “O crime é a busca desesperada da felicidade autêntica, em contraposição aos falsos valores sociais”.

 

Assim como Oiticica, outros artistas dos anos 60 também usariam a bandidagem como inspiração para seus trabalhos. A glamurização do crime seria ainda beneficiada pelo cobertura sensacionalista da imprensa carioca.

 

A artista plástica Lygia Clark também falou sobre a bandidagem dos anos 60 e o tráfico de drogas nas favelas:

“Na nossa época (Lygia e Hélio Oiticica freqüentavam a Mangueira), o máximo que tinha era um pouco de maconha, de cheirinho-da-loló. Conheci o Mineirinho, a mulher dele, Maria Helena, e o Cara de Cavalo. Eram bandidos românticos. Poderiam até atirar num policial, o que significava que estariam jurados de morte. Mas você podia freqüentar o morro inteiro. Agora não, você não entra no morro se não tiver autorização do chefe da droga. O narcotráfico fez da favela uma coisa doente.

Trecho da entrevista de Hélio Oiticica sobre a obra “Homenagem a Cara-de-Cavalo”:

“Conheci Cara de Cavalo pessoalmente e posso dizer que era meu amigo, mas para a sociedade ele era um inimigo público nº 1, procurado por crimes audaciosos e assaltos – o que me deixava perplexo era o contraste entre o que eu conhecia dele como amigo, alguém com quem eu conversava no contexto cotidiano tal como fazemos com qualquer pessoa, e a imagem feita pela sociedade, ou a maneira como seu comportamento atuava na sociedade e em todo mundo mais. Esta homenagem é uma atitude anárquica contra todos os tipos de Forças Armadas: polícia, Exército etc. Eu faço poemas-protestos (em Capas e Caixas) que têm mais um sentido social, mas este para Cara de Cavalo reflete um importante momento ético, decisivo para mim, pois que reflete uma revolta individual contra cada tipo de um condicionamento social. Em outras palavras: violência é justificada como sentido de revolta, mas nunca como o de opressão”.

Texto publicado no Catálogo da exposição Whitechapel Experience.