‘Monstro, prostituta, bichinha’: como um Promotor acusou e um Juiz condenou a primeira mulher trans submetida pelo médico Roberto Farina a cirurgia de mudança de sexo do Brasil 7

‘Monstro, prostituta, bichinha’: como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil

Imagem de Waldirene em laudo do IML, 1976Direito de imagemBBC BRASIL
Image captionFotografia de Waldirene em laudo do IML, feita em 1976; ela teve negado o pedido do habeas corpus preventivo para não ser submetida ao exame (a marca protegendo os seios foi feita pela BBC Brasil)

Waldirene estava constrangida e acuada. Na noite anterior, dois homens haviam entrado na escola onde ela estudava inglês, no interior de São Paulo, para levá-la coercitivamente para o Instituto Médico Legal da capital, a mais de 400 quilômetros. Ao chegar lá, foi obrigada a se despir, mantendo apenas as sandálias de salto plataforma baixo. Era 1976, em plena ditadura militar – o diretor do IML, Harry Shibata, seria posteriormente considerado conivente com a repressão.

Nua, Waldirene passou a ser fotografada. Primeiro, de frente. A jovem loira, de 30 anos, 1,72 metro de altura, olhava para o chão, evitando o homem por trás das câmeras. Seus lábios estavam cerrados. Os braços, colados ao lado do corpo, enquanto as pernas apertavam-se uma contra a outra, em uma tentativa de se proteger da exposição. Pediram a ela que se virasse de um lado, de outro e depois se sentasse. Em cada posição, uma nova foto.

Waldirene foi ainda submetida a um exame ginecológico. Um espéculo de metal foi introduzido em seu corpo e, dentro dele, uma fita métrica. A cena foi fotografada para registrar o comprimento e a largura do canal vaginal. A jovem, que trabalhava como manicure no interior, havia pedido um habeas corpus preventivo para não ser submetida a tudo isso. Mas a Justiça paulista negou.

O objetivo do IML era extremamente peculiar: verificar se Waldirene era mulher. O nome que constava em sua ficha era outro, Waldir Nogueira.

Cinco anos antes, em dezembro de 1971, Waldirene havia sido submetida a uma cirurgia para mudança de sexo genital – de masculino para feminino. Ou melhor, “para a fixação do seu verdadeiro sexo, que sempre foi feminino”, segundo ela mesma. Essa é considerada a primeira operação do tipo feita no Brasil.

A cirurgia foi realizada no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, por Roberto Farina, naquele momento um dos mais importantes cirurgiões plásticos do país. Antes disso, Waldirene foi acompanhada durante dois anos por uma equipe interdisciplinar do Hospital das Clínicas, que a identificou como transexual, condição em que o gênero é diferente do sexo físico.

Em outras palavras, é como ser mulher, tendo nascido em um corpo masculino – ou o contrário. A cirurgia é, assim, uma forma de adequar o corpo ao verdadeiro gênero – quando assim desejado pelo indivíduo.

“Minha vida antes da operação era um martírio insuportável por ter que carregar uma genitália que nunca me pertenceu. Depois da operação fiquei livre para sempre – graças a Deus e ao dr. Roberto Farina – dos órgãos execráveis que me infernizavam a vida, e senti-me tão aliviada que me pareceu ter criado asas novas para a vida”, escreveu Waldirene na época.

Tudo correu bem. Até que, em 1976, o Ministério Público de São Paulo descobriu a intervenção médica e denunciou Farina por lesão corporal gravíssima, sujeita a pena de dois a oito anos de prisão.

Waldirene foi considerada vítima, à sua própria revelia. Os órgãos masculinos retirados na operação foram tidos como um “bem físico” tutelado pelo Estado, “inalienável e irrenunciável”. “Dizer-se que a vítima deu consentimento é irrelevante”, afirmou relatório policial sobre o caso.

“Não há nem pode haver, com essas operações, qualquer mudança de sexo. O que consegue é a criação de eunucos estilizados, para melhor aprazimento de suas lastimáveis perversões sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros”, denunciou o procurador Luiz de Mello Kujawski em pedido de instauração de inquérito policial.

“Eu não tinha lei a meu favor, era tudo contra mim. Eu era tida como puta. Não consigo me desvencilhar dessas coisas até hoje”, diz Waldirene, agora uma senhora de 71 anos, ainda manicure no interior de São Paulo.

“Eu fui pioneira. Segurei bandeira até para quem não me conhece.” Ela não quis ser fotografada hoje por medo do retorno do “pesadelo” que viveu no passado. Para preservá-la, a BBC Brasil omitiu o nome da cidade onde vive. Já Roberto Farina faleceu em 2001, aos 86 anos.

Waldirene fantasiadaDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionWaldirene no Carnaval, na década de 1970; ela passou toda a infância dormindo em um quarto separado dos irmãos e irmãs

A garota brasileira

Waldirene nasceu em 1945, no interior de São Paulo. O pai, caminhoneiro, e a mãe, dona de casa, tiveram nove filhos: “quatro meninos, quatro meninas e eu”, diz ela.

Os meninos dormiam em um quarto, as meninas em outro. Já para Wal (seu apelido), o pai construiu um dormitório separado, onde antes ficava a despensa da casa. É ali que ela dorme até hoje – agora, a única moradora da residência.

“Eu sempre fui Waldirene”, fala ela. Na infância, preferia as brincadeiras de menina. Enquanto os irmãos fingiam que eram caubóis, ela era a mocinha. “Queria ser igual às minhas irmãs. Por que eu nasci como eu era?”

Na adolescência, a feminilidade foi se acentuando. Não tinha pelos no rosto, sua voz não engrossou, sua cintura era levemente marcada. Além disso, passou a se interessar por homens.

Os problemas com a família também foram aumentando. O pai, inclusive, tentou tratar o filho “meio-termo” com hormônios masculinos. Até que Wal decidiu se afastar da família e foi viver em uma cidade próxima, também no interior de São Paulo, ganhando a vida como manicure.

Era apaixonada pelo mundo do cinema. Um dos seus passatempos era recortar fotos de atores e atrizes estrangeiros em revistas da época. Foi assim que conheceu a história de Coccinelle, dançarina de cabaré francesa que nasceu homem e foi operada. Wal passou a desejar para si a mesma metamorfose.

Sua transformação começou quando um médico do interior lhe orientou a procurar a endocrinologista Dorina Epps no Hospital das Clínicas de São Paulo, em 1969. “Logo que ela me viu, quis me ajudar. Foi muito minha amiga, muito atenciosa, devo muito a ela”, lembra Waldirene.

Dorina Epps, hoje com 94 anos e impedida de falar por problemas de saúde, foi pioneira nos estudos de gênero no Brasil. Nas Clínicas, sob direcionamento dela, Waldirene foi extensivamente examinada. Também passou a frequentar sessões de terapia semanais. Logo, veio o laudo: “Trata-se de paciente que demonstra possuir personalidade com características claramente femininas, estruturadas desde a infância”.

Em um primeiro momento, foi aventada a possibilidade de levar Waldirene para ser operada nos Estados Unidos – naquela época, a cirurgia só estava disponível no exterior. Foi então que o caso chegou a Roberto Farina, professor da Escola Paulista de Medicina. O médico já era pioneiro em cirurgias urogenitais, mas nunca tinha feito operações de mudança de sexo.

“Diante do caso, adquiri literatura especializada e realizei em cadáveres várias operações plásticas com a finalidade de alcançar conhecimento necessário para realizar a operação em Waldir”, disse o médico em depoimento judicial. A cirurgia consiste na retirada dos órgãos sexuais masculinos e na construção de uma vagina.

Waldirene não temeu o pioneirismo. “Eu não tinha medo da operação, só queria resolver o meu problema”, conta.

A cirurgia, feita sem nenhum custo para a paciente, ocorreu cerca de vinte anos depois do primeiro caso bem-sucedido conhecido no mundo, o da americana Christine Jorgensen, operada na Dinamarca em 1952. Ainda antes, na década de 1930, Lili Elba passou pela primeira tentativa de cirurgia transgênero, mas morreu em uma das operações – sua história inspirou o filme A Garota Dinamarquesa (2015).

Já recuperada, Waldirene voltou para sua cidade natal como uma nova mulher, os cabelos loiros crescidos, o corpo feminino e uma alegria inédita. Um dos motivos do retorno foi uma paixão por um estudante universitário que era a cara do personagem do ator Robert Redford no filme Proposta Indecente (1993), lembra ela. O romance ocorreu às escondidas. “Ninguém poderia saber, seria um escândalo para ele.”

Mas, quando o rapaz terminou a faculdade, a história acabou. Waldirene ficou desolada. Seria só o começo de uma história de infortúnios.

Roberto FarinaDireito de imagemARQUIVO DA FAMÍLIA DE ROBERTO FARINA
Image captionO cirurgião plástico Roberto Farina foi o primeiro a realizar cirurgias em transexuais femininos e masculinos no Brasil

O pioneiro

No final de 1975, Farina anunciou em um congresso científico que vinha realizando cirurgias de mudança de sexo no Brasil. Além de Waldirene, tinha feito cerca de uma dezena de operações – outros pacientes estavam na espera, entre eles um índigena da tribo carajás. A princípio, o caso foi visto pela comunidade médica como uma inovação. Porém, logo chegou à esfera judicial.

Ciente do caso, o Ministério Público pediu que Farina fosse investigado por lesão corporal, por estar “mutilando” homens. A polícia, então, intimou o médico a fornecer o nome completo e o endereço de todos os pacientes que tinha operado – o que ele se recusou a fazer.

A história poderia ter sido encerrada aí, não fosse por outro processo judicial. Waldirene tinha entrado na Justiça para mudar o nome nos documentos – oficialmente, ela ainda era Waldir. Assim, o Ministério Público descobriu sua identidade. Era o que bastava para começar o cerco judicial.

O laudo do IML foi uma das primeiras providências. Apesar do constrangimento sofrido por Waldirene, os médicos-legistas concluíram que ela era mulher. Além disso, apoiaram Farina: “Acreditamos ter sido a intervenção terapeuticamente necessária”.

O resultado, embora surpreendente, não freou o ímpeto do novo promotor do caso, Messias Piva: “Não deve o jurista impressionar-se com as atitudes sentimentais expressas por Waldir e afirmadas, com certo sensacionalismo pelos médicos, mediante alusões ao ‘seu sonho de ser mulher’. A realidade é outra (…) Waldir Nogueira é um doente mental”. Piva já é falecido. O Ministério Público de São Paulo não quis comentar.

O processo provocou comoção na comunidade científica internacional. Quase duas dezenas de pesquisadores de diversos países enviaram cartas de apoio a Farina – já no Brasil, foram poucos os que o apoiaram além da equipe que participou do caso de Waldirene no Hospital das Clínicas.

“Seria um erro das autoridades judiciais no Brasil de processar o Dr. Farina por seguir um procedimento médico e cirúrgico internacionalmente respeitado e aceito”, escreveu, em 1976, o cirurgião plástico John Money, da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins.

“Em nenhum dos outros países do mundo onde esse tipo de tratamento médico foi praticado, um médico foi acusado de conduta criminosa pelo Estado. É um retrocesso muito danoso para a imagem do Brasil”, apontou o psiquiatra Robert Rubin, da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles, também em 1976.

Nada disso bastou para convencer o juiz Adalberto Spagnuolo. Em 6 de setembro de 1978, o magistrado condenou Roberto Farina a dois anos de reclusão por lesão corporal de natureza gravíssima em Waldir Nogueira.

Na sentença, sugeriu que o paciente deveria ter sido “submetido a tratamento psicanalítico de longa duração como tentativa de cura”. Spagnuolo tem hoje 80 anos e está aposentado. A BBC Brasil não conseguiu contato com o juiz. O Tribunal de Justiça não quis se manifestar.

“Foi um caso de manipulação da ciência em nome dos costumes”, resume Angela Caniato, coordenadora de gestão documental do Tribunal de Justiça de São Paulo, que encontrou o processo.

Trechos da denúncia do Ministério Público paulista contra Roberto FarinaDireito de imagemBBC BRASIL
Image caption‘Monstro’, ‘prostituta’, ‘doente mental’, ‘mutilado’, ‘eunuco’, ‘bichinha’ foram algumas das palavras usadas pelo Ministério Público paulista para se referir a Waldirene no processo contra Farina

Pessoa idônea

A condenação de Farina alarmou seus pacientes. Entre eles, João W. Nery. Quando ele leu a notícia nos jornais, “foi como se tivesse levado um soco no estômago. O coração parecia sair pela boca. O corpo todo tremia pedindo mais ar”. “O meu médico foi condenado, não pode mais operar”, disse ele.

Um ano antes, em 1977, João fora operado por Farina, deixando para trás o corpo de Joana – sua cirurgia é considerada a primeira operação em um transexual masculino no Brasil. O relato está no livro de memórias Viagem Solitária, no qual João agradece o médico “pelo pioneirismo cirúrgico em nos fazer renascer”.

Tanto a defesa quanto a acusação recorreram da sentença, e o caso foi para a segunda instância. Farina pôde esperar pelo julgamento em liberdade.

O Ministério Público pediu o aumento da pena: “Admitindo-se que ele (Waldir) possa oferecer sua neovagina a homens, então somos forçados a concluir que agora ele é uma prostituta”, afirmou o promotor Piva, em 1978. “Embora mutilado, Waldir continuará sendo o que sempre foi, ou seja, um homem que mantém relações sexuais com outros homens. Mas a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo será sempre uma aberração, tanto à natureza como à lei.”

E continuou: “Farina quer que os portadores de distúrbios mentais possam autorizar a realização em seus próprios corpos de cirurgias mutiladoras; que os homossexuais – ‘bichinhas’ – entrem em fila para conseguirem a cirurgia; que os pais de família sejam obrigados a suportar, em seus lares, filhos homossexuais – do que ninguém está livre – e ainda mutilados”.

A defesa ficou indignada com o palavreado e acusou a Promotoria de “pura demagogia, preconceito e paixão, incompatíveis com um julgamento sério”. Já Waldirene partiu em defesa de Farina, a quem considerava seu “herói” e seu “segundo pai”, recolhendo cartas de apoio na sua cidade natal, em 1978.

“Waldirene Nogueira é pessoa de bom caráter, de princípios morais e comportamento exemplar, tratando-se pois de pessoa equilibrada e socialmente adequada”, escreveu o então prefeito da cidade.

“Trata-se de pessoa idônea, de boa formação moral, intelectual e profissional, nada me constando, até a presente data, que possa vir em desabono a sua conduta no seio dessa comunidade”, declarou o delegado local de polícia.

Advogados, ex-prefeitos, presidentes de associações também emitiram suas cartas, todas registradas em cartório. O próprio cartorário, comovido, resolveu aderir à causa. Além disso, um abaixo-assinado reuniu cerca de 350 assinaturas.

A última declaração de apoio juntada ao processo foi de Espiridião, um homem de idade, que a princípio rejeitou a transformação de Waldir: “Declaro que minha filha Waldirene Nogueira sempre viveu em nossa casa, com seus pais, achando-se depois da cirurgia realizada em 1971 em condições ótimas de saúde e com comportamento normal, relacionando-se bem com todas as pessoas de suas relações sociais”.

Em novembro de 1979, os desembargadores que julgaram o caso em segunda instância anularam a condenação de Farina.

Carta de John Money, da Universidade de Medicina da Universidade Johns Hopkins, em defesa de Roberto Farina, em 10 de novembro de 1976Direito de imagemBBC BRASIL
Image caption‘Antigamente, (a transexualidade) era vista como um pecado ou um crime. Hoje é vista como uma condição médica e assim é tratada’, escreveu o médico John Money em apoio a Roberto Farina em 1976

Pênis no nariz

“Farina foi ridicularizado por causa do processo. Teve uma grande perda de clientela. Faziam piadas, diziam que quem fosse operar o nariz com ele sairia com um pênis implantado no rosto. Mesmo assim, continuou a fazer as operações (de mudança de sexo). Dizia que não podia virar as costas para os transexuais”, recorda Glaucio Farina, sobrinho do médico e também cirurgião plástico.

Depois da vitória na segunda instância, o pioneirismo de Farina acabou produzindo um legado positivo. Ainda em 1979, uma emenda a um projeto de lei abriu brecha para realizar esse tipo de cirurgia no Brasil. Ficou estabelecido que a retirada de órgãos não era punível quando considerada necessária em parecer médico unânime e com consentimento do paciente. O texto não fazia menção direta à mudança de sexo, mas era uma forma de proteger médicos como Farina de futuros processos.

Porém, foi apenas em 1997 que o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou a realização de cirurgias de mudanças de sexo em transexuais – inicialmente, em caráter experimental. A partir de 2008, a cirurgia foi incluída no Sistema Único de Saúde (SUS) – os nomes utilizados atualmente são cirurgia de redesignação sexual, processo transexualizador ou cirurgia de afirmação de gênero. Desde então, mais de 400 procedimentos hospitalares foram realizados na rede pública.

“Farina foi um grande pioneiro, mas seu trabalho é pouco divulgado até hoje. O processo judicial contribuiu muito para o afastamento da academia e até do CFM em relação a ele. É preciso desfazer isso historicamente”, diz o endocrinologista Magnus Regios Dias da Silva, coordenador do Núcleo de Ensino, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), batizado em homenagem a Roberto Farina.

Criado há um ano, com participação da população trans, o núcleo conta com um ambulatório de atendimento de saúde. “Hoje, em 2018, é difícil trabalhar com esse ambulatório. Sofro todos os tipos de pressões transfóbicas – religiosas, políticas e até da academia. Imagina então naquela época, quarenta anos atrás. Farina foi um guerreiro, um visionário”, compara Magnus. Segundo ele, o cirurgião antecipou a concepção de atendimento à pessoa trans que o Brasil implementa hoje.

Em 1982, Farina publicou o livro Transexualismo e escreveu: “Lamentavelmente, as nossas leis, costumes e tradições não têm um mínimo de compreensão, tolerância e consideração para os transexuais (…) A investigação científica, paralelamente ao avanço da tecnologia, aos poucos vai vencendo os seus maiores inimigos que são a ignorância e a superstição”.

Apesar da absolvição de Farina, a Justiça condenou Waldirene a viver com o nome de Waldir. A manicure perdeu o processo em que lutava para mudar os documentos. Isso inviabilizou, por exemplo, que pudesse exercer a carreira de contabilidade, na qual tinha se formado antes da cirurgia. Afinal, como se apresentar como mulher, mas assinar os documentos dos clientes como homem? Para evitar esse mesmo constrangimento, ela nunca tirou carteira de motorista.

Sua certidão de nascimento só foi alterada quando tinha 65 anos, em outubro de 2010. O RG, em janeiro de 2011. A conquista veio depois de uma nova batalha judicial, com um advogado que não cobrou nada pelo serviço, indicado por Dorina Epps, a médica que a recebeu nas Clínicas em 1969. “Meu pai e minha mãe morreram, e eu ainda não tinha o nome correto”, lamenta.

Agora, mais nenhuma pessoa trans precisará passar por isso. Em primeiro de março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a mudança do nome e do sexo diretamente em cartório, sem necessidade de autorização judicial. Também não é necessário ter passado por cirurgia de redesignação sexual ou terapia hormonal, nem apresentar pareceres ou laudos médicos – muito menos do IML, como ocorreu com Waldirene na década de 1970.

Carta manuscrita de Waldirene aos advogados de FarinaDireito de imagemBBC BRASIL
Image captionCarta de Waldirene para os advogados do médico Roberto Farina, em 1978, após a condenação em primeira instância

Uma mulher fantástica

A vida de Waldirene mudou completamente depois do processo contra Farina. Humilhada na Justiça, na imprensa e na cidade, a garota extrovertida começou a ter medo de sair de casa. Ainda hoje, quarenta anos depois, quando está em local público, ela tem a sensação de que está sendo observada e de que as pessoas estão comentando sobre ela. O resultado é que passa a maior parte do tempo sozinha. A única exceção é o Carnaval, “uma oportunidade de sair da ostra”.

Waldirene continua a trabalhar como manicure, para complementar a aposentadoria de um salário mínimo. A clientela é esporádica – no dia da visita da BBC Brasil, atendeu apenas uma pessoa. Cobra 30 reais para fazer pé e mão. O salão fica na antessala da casa onde vive. Os móveis, os objetos e parte dos eletrodomésticos parecem brotar dos anos 1980, intocáveis desde que os pais de Wal morreram.

“Tenho uma vidinha boa. Mas é uma vidinha. Não posso ter grandes sonhos”, diz ela. “Falar que a vida é bela? Não dá.” Os problemas de saúde estão se acumulando, e é difícil encontrar médicos que entendam – e aceitem – suas cirurgias do passado. Um médico urologista com quem se consultou disse que “não acreditava” na sua vagina. Um oftalmologista quase caiu da cadeira quando ela contou que nasceu Waldir.

A garota do interior nunca se casou nem teve um relacionamento duradouro. Os homens da cidade falavam para ela: “Se eu posso ter uma mulher normal, por que vou ficar com uma imitação?”. Ela reclama que eles só queriam sexo, nunca amizade, companheirismo, romance. “Hoje eu sou solitária porque eu não quero ninguém se divertindo à minha custa.” Ainda hoje é uma mulher bonita, loira, curvilínea, quase sem rugas – embora custe a acreditar nisso.

Entre solidões e amarguras, Waldirene faz uma pausa na conversa com a BBC Brasil por causa de uma lembrança. Na juventude, ela cantava em serenatas, mas parou porque o pai achava que estavam tirando sarro dela. Agora, se recordou de uma interpretação de Nora Ney para um samba de Nelson Cavaquinho e sentiu vontade de cantar outra vez. Ela abre os braços e solta a voz:

“Sei que amanhã Quando eu morrer, Os meus amigos vão dizer Que eu tinha um bom coração / Alguns até hão de chorar E querer me homenagear, Fazendo de ouro um violão / Mas depois que o tempo passar, Sei que ninguém vai se lembrar Que eu fui embora / Por isso é que eu penso assim, Se alguém quiser fazer por mim, Que faça agora / Me dê as flores em vida, O carinho, a mão amiga, Para aliviar meus ais / Depois que eu me chamar saudade, Não preciso de vaidade, Quero preces e nada mais.”

Salão de WaldireneDireito de imagemBBC BRASIL
Image captionWaldirene foi manicure durante toda a vida; formada em contabilidade, ela não pôde trabalhar na área por ter sido proibida de alterar o nome de nascimento

Cirurgia de Redesignação / Readequação: “Não se preocupe, toda cirurgia fica bonita quando a beleza vem de dentro”! – No Brasil há outro grande perigo para a vida e saúde das mulheres trans: O CIRURGIÃO PLÁSTICO DESONESTO E INCOMPETENTE ! 2

29/01/2020 – Roberto Conde Guerra

Neste dia nacional da visibilidade trans deve-se abordar um assunto que virou rotina nas delegacias de polícia e escritórios de advocacia: mulheres trans vítimas de cirurgiões incompetentes, verdadeiros açougueiros .

A cidade de São Paulo está repleta desse tipo de profissional que , alardeando falsamente cursos de especialização no exterior , exploram a fragilidade de moças que vão em busca da tão sonhada redesignação ou mesmo de reparação a cirurgias pessimamente executadas por outros “médicos especializados”.

A paciente, sofrendo psiquicamente, pois não raro é humilhada por namorados e companheiros com o rotineiro: “não é mulher de verdade” , não é alertada sobre os riscos da cirurgia, tampouco para a grande probabilidade do insucesso desse tipo de intervenção cirúrgica.

Quando verifica que , em vez de melhores resultados,  ficou ainda pior , o “doutor” vem com a desculpa de que no site e no contrato há os necessários alertas sobre os riscos.

E aproveitando-se do desconhecimento sobre a lei, ainda , fazem com que a paciente subscreva um contrato padrão , pelo qual teria tomado ciência de que toda e qualquer intercorrência seria de responsabilidade da contratante.  Isentando , assim, o cirurgião de quaisquer responsabilidades sobre o resultado.

Ou seja, a vítima paga para correr risco de morte e lesão corporal gravíssima.

Com efeito, esse suposto assentimento da vítima não isenta o médico da responsabilização penal , civil e administrativa. Se há todos esses riscos não se deve operar, ainda mais quando se trata da estética intima .

Ao contrário , durante a consulta se faz muitas promessas, tipo: “dou o melhor de mim sempre” , “ a melhor cirurgia de qualquer cirurgião é sempre a mais recente, pois as anteriores o prepararam para a do dia presente”.

Conversa de vigarista!

A iludida , entrega o pouco que tem , economizado com muito sacrifício , recebendo em troca maiores cicatrizes , mutilações , hemorragias com risco de morte e fistulas decorrentes de lesões na vagina e na bexiga.

Para consertar, depois de muitos meses sofrendo , tem que buscar o SUS.

O charlatão não se responsabiliza por nada em relação ao fracasso decorrente da sua imperícia, imprudência e negligência. Esse tipo de cirurgião criminoso enriquece causando mal físico e mental a pessoas hipossuficientes que, de regra,  têm medo de buscar seus direitos junto aos órgãos da justiça.

Sabem que serão tratadas  com total desprezo …

Muitas vão buscar alívio no suicídio ou refugio no exterior , onde não serão tratadas como meras prostitutas ou doentes mentais  sem quaisquer direitos.

Nenhuma cirurgia estética deve ser realizada apenas pela solicitação da paciente. O médico , antes de buscar os honorários vultosos , deve atentar que a correção de danos estéticos não implique maior vexame, sofrimento moral e perturbações à saúde física e mental das mulheres trans.

Enfim, o local para esse tipo de médico é a cadeia!

Observem o verdadeiro objurgatório cruel que disparam contra as suas vítimas:

“Não se preocupe , toda cirurgia fica bonita quando a beleza vem de dentro”!

A coitada ao atentar para a frase empregada como apresentação do cirurgião entende que , além de disfuncional , é feia de alma!

Perdeu o dinheiro , quase morreu , perdeu a saúde ,  ficou meses sem trabalhar até um médico do SUS lhe atender ,  por CASTIGO DIVINO! 

 

 


Do transexualismo
Segundo Farina, o transexualismo consiste em uma “pseudo-síndrome psiquiátrica,
profundamente dramática e desconcertante, na qual o indivíduo se identifica com o gênero
oposto. Constitui um dos mais controvertidos dilemas da Medicina moderna, em cujo recinto
poucos médicos ousam adentrar. O indivíduo nega o seu sexo biológico e exige a operação de
reajustamento sexual a fim de poder assumir a identidade do seu verdadeiro gênero, que não
condiz com seu sexo anatômico.
Em outras palavras, são indivíduos que apresentam, ao simples exame ocular, genitais
externos do tipo masculino e são portadores de uma psique totalmente ou predominantemente
feminina, e vice-versa, conforme já se acentuou. Desde criança sofre o indivíduo um imenso
conflito oriundo de uma ruptura entre sua psique e a realidade corporal. Com o advento da
puberdade, o indivíduo adquire a consciência plena de sua anomalia, surgindo,
freqüentemente, um duplo conflito: de um lado, o conflito interno, que consiste em um
permanente desgosto, senão em revolta, em relação aos seus órgãos genitais e aos atributos
secundários de um sexo que o indivíduo sente não ser o seu; do outro, o conflito externo,
oriundo de sua vida de relação. O ambiente social onde vive lhe é hostil. A sociedade não
compreende a anomalia. O preconceito, a falta de solidariedade, acabam por levar o
transexual ao próprio isolamento e a uma extremada solidão. Esta é uma das razões pela qual
alguns transexuais recorrem ao tranvestimento, procurando, deste modo, ocultar a triste
realidade.

Da etiologia do transexualismo
A origem da síndrome do transexualismo é controvertida. Os estudos etiológicos do
fenômeno transexual são explicados em duas grandes correntes.
A primeira corrente parte da análise dos fatores relativos ao ambiente social onde o
indivíduo se desenvolve, após o seu nascimento. Esta teoria procura suas justificativas na
Psicologia e é denominada de teoria psicossexual.A outra considera os fatores endócrinos no
desenvolvimento pré-natal do indivíduo – chamam-na de teoria neuroendócrina, teoria esta
que, pelas razões que justificaremos a seguir, melhor nos parece para tentar explicar o
fenômeno.

Segundo os mais recentes estudos, o hipotálamo, controlador do comportamento
sexual, é, em todos os fetos, fundamentalmente feminino, independentemente de serem fetos
geneticamente masculinos ou femininos.
Um excesso de estrógenos na mãe, ou a falta de funcionalidade dos órgãos neurais,
causaria a permanência do centro hipotalâmico com características femininas, deflagrando,
mais tarde, um comportamento sexual anormal nos indivíduos. A transexualidade, portanto, é
resultante de uma alteração genética no componente cerebral,
Esclarece Olázabal4
que a gênese do transexualismo implica em “alterações nas
estruturas dos centros de identidade sexual do hipotálamo”, uma vez que a secreção
androgênica, produzida pela gônada primitiva, não atinge aquele centro ou este não responde
a essa secreção.

 

Clique para acessar o consequencias-juridicas-da-cirurgia-de-transgenitalizacao.pdf

 

Academias de Polícia disseminam a falsa concepção de que pessoas transgêneros são portadores de psicopatia sexual 16

Academias de Polícia  são verdadeiros  túmulos da ciência e da cultura.

Os concursados nelas  ingressam com algumas qualidades ; lá acabam deformados e desinformados .

Não sem razão , nos círculos mais cultos , policiais não são bem recebidos…

Pouco importando pertencerem aos quadros mais qualificados: Oficiais PM, Peritos, Legistas ou Delegados de Polícia.

De regra, se tornam ignorantes e alheios a quaisquer assuntos que não digam respeito aos seus próprios interesses pessoais e corporativos.

Na Academia da Polícia Civil do Estado de São Paulo ainda se ensina , como se estivéssemos nos anos 1930 do século passado, que o transexual é portador de transtorno do instinto sexual denominado INVERSÃO, decorrente de “vício” , fato congênito ou sintoma de mal mental adquirido.

Os dois maiores ignorantes a propagar tal doutrina foram os festejados médicos: FLAMÍNEO FÁVERO   E  AFRÂNIO PEIXOTO.  E na esteira desses dois “mestres” seguiram-se muitos outros .

Segundo os festejados doutores de medicina legal: o transgênero não passa de um pervertido sexual.

Por conta da degeneração sexual ,  o invertido ” entrega-se preferivelmente ao exercício de profissões do sexo oposto ao seu do qual, ainda, assume , certas particularidades de caráter, atitude, vestes ( travestismo ou disfarcismo), etc. ” ( “sic”  , Medicina Legal, Flamíneo Fávero, fl. 803, 12ª edição , 1980 ) .

Sim , a obra é vetusta e completamente desatualizada, mas continua fazendo seguidores…

É como o Hely Lopes Meirelles , quando se trata de Direito Administrativo, as  lições são tão cadavéricas  quanto o autor, mas ainda repetidas por 9 entre 10 , “juristas” .

Os autores de obras de Medicina Legal, aparentemente , são avessos a transformações, pois compulsando a obra Medicina Legal e Noções de Criminalística, a Dra. Neusa Bittar  , trata a questão  como um forma de condutopatia , de se ver fl. 359, Editora Juspudivum, 8ª edição, 2019 .

Com efeito , não bastasse tais absurdos , ainda nas aulas de defesa pessoal alerta-se para o extremo perigo que os travestis representam para os policiais;  para os quais deve-se dedicar muita atenção nas revistas pessoais, especialmente: lâmina gilete dentro da boca.

Enfim, não me surpreenderia o fato de muitas dessas mortes relatadas na matéria da Ponte Jornalismo , ser mais uma forma de “limpeza social” executada por “Guerreiros do Senhor” ( nova denominação para certos policiais bandidos ).

Por outra via , em diversos casos que atendemos , a vítima foi morta após o “hétero” surtar em razão da culpa de se deixar possuir pela ” menina linda bem dotada”!

É bem assim: o machão enche a cara , cheira cocaína, da o cu para o traveco e depois, arrependido ,  comete assassinato.

Quando preso alega que foi enganado e que seria a vítima de roubo e violência.

Pra mulher , se for evangélica, basta dizer que a culpa foi do diabo…Tá perdoado!

DIA NACIONAL DA VISIBILIDADE TRANS – Assassinato de pessoas trans cresce 66% no estado de São Paulo, segundo Dossiê Trans 5

29/01/20 por Paloma Vasconcelos

Pelo 11º ano consecutivo, Brasil lidera ranking mundial de assassinatos; mulher trans ou travesti, negra e profissional do sexo é o perfil das vítimas

II Caminhada pela Paz Sou Trans Quero Dignidade e Emprego de 2017, em SP | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O número de assassinatos de pessoas trans saltou de 14 para 51, um aumento de 66,7% de 2018 para 2019, no estado de São Paulo. O índice nacional teve redução de 24%: foram 163 casos de pessoas trans mortas em todo no Brasil em 2018 e 124 no ano passado.

Os dados são do Dossiê Trans, uma pesquisa organizada pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e pelo IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação), assinada pelas pesquisadoras Bruna Benevides e Sayonara Nogueira, que pode ser vista na íntegra aqui.

Diante disso, pelo 11º ano consecutivo, o Brasil lidera o ranking mundial de país que mais mata transexuais e travestis no mundo. Para se ter uma ideia, em 2019, o México, segundo colocado no ranking, registrou 63 casos, seguido pelos Estados Unidos com 30.

Leia mais:

Especial Trans | Uma pessoa trans é morta a cada 48 horas no Brasil

Pessoas trans podem mudar de nome sem necessidade de cirurgia, decide STF

Impedidas de usar o banheiro: a realidade de pessoas trans no Brasil

O dossiê também traça um perfil das vítimas: jovens negras de 15 a 29 anos, que reivindicam ou expressam o gênero feminino (mulheres trans e travestis) e que tem como fonte de renda a prostituição. Mortes por arma de fogo totalizam 43 assassinatos em 2019, seguido por 28 assassinatos com uso de faca.

Maioria das vítimas de assassinatos é profissional do sexo

Em entrevista à Ponte, a pesquisadora Bruna Benevides, 40 anos, que é militar da Marinha e secretária de comunicação da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), não podemos comemorar a diminuição dos assassinatos em 2019, pois eles não representam mudanças.

“É importante observar que 2017 foi um ano fora da curva. Na história do Brasil foi o ano com mais números de assassinatos, então não pode ser o parâmetro. Para nós, que lutamos para a queda real da violência, o parâmetro é o ano que teve menos números e não o que teve mais. A média anual é de 118 assassinatos”, explica Benevides.

Pessoas trans negras são as principais vítimas de assassinatos

Bruna também cobra uma análise do governo sobre os assassinatos da população LGBT. Ela argumenta que políticas públicas só são feitas se há dados que as justifiquem. “Estimamos que seja pelo menos o dobro de números de assassinatos se os dados fossem levantados por esferas governamentais”.

“A partir disso entendemos que a omissão do estado frente ao levantamento de dados, de certa forma, se torna muito confortável, porque, se ele não levanta os dados, se ele não reconhece essa violência que é específica, ele não tem que tomar ações específicas”, aponta Benevides.

Para a pesquisadora, o dado mais importante do dossiê é o perfil das vítimas, pois, a partir dele, é possível pensar em políticas públicas que protejam essa população. “A questão da violência não pode ser tratada apenas com medidas que enfrentem as consequências, tem que enfrentar as causas e de forma preventiva, alinhada a campos que não só o da segurança pública”.

Assassinatos de pessoas trans por estado

“Elas morrem trabalhando nas ruas, não por ser uma atividade perigosa, mas por que não conseguimos que elas desenvolvam a sua atividade profissional sem sofrer violência. Mesmo uma menina trans que está trabalhando em um emprego formal, muito provavelmente ela vai passar por outros processos de violência, simbólicos e psicológicos”, argumenta Bruna.

Benevides chama a atenção para o paradoxo de São Paulo, estado que mais acolhe as lutas LGBTs, em determinados momentos do ano, como a semana da Parada da Diversidade, que reúne milhões de turistas e move a economia da capital paulista, e é, ao mesmo tempo, o local em que pessoas LGBTs mais são assassinadas.

“É extremamente assustador. Porque, embora seja um local que é friendly em alguns períodos do ano, é um local com índices populacionais muito altos e que sofre processo de sucateamento das políticas públicas. Esse aumento é decorrente da falta de ações e, óbvio, a eleição de governos que tem um viés antidemocrático e autoritário”, critica.

‘A pessoa trans no Brasil já nasce morta’

Além de trazer dados sobre os assassinatos da população trans, a 3ª edição do Dossiê Trans também chama atenção para outro tipo de assassinato: o social. Essa é a expressão usada na pesquisa para falar da falta de acesso à educação, saúde, emprego, uso do banheiro e respeito ao nome social.

“Nós, ativistas, dizemos que qualquer pessoa trans no Brasil já nasce morta pela dificuldade de acesso a qualquer tipo de política pública. As nossas lutas ainda são muito primárias. Somente em 2018 tivemos a garantia do direito ao nome. Se fizermos uma analogia com o restante da população, direito ao nome é o primeiro direito que qualquer cidadão recebe depois do direito à vida”, explica Bruna Benevides, pesquisadora do Dossiê.

Os discursos do governo federal, como a fala de Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, que meninos deveriam vestir azul e meninas, rosa, afirma a pesquisadora, auxiliam para que os assassinatos sociais de pessoas trans continuem.

“Se formos analisar, quando o espantalho da ideologia de gênero é amplamente difundido neste governo, ele se torna uma bandeira de luta contra a existência das pessoas trans. A ministra não está falando de cores, ela está falando de meninos que vestem rosa e meninas que vestem azul que não podem conviver pacificamente, já que não existem campanhas, por exemplo, para enfrentar o bullying LGBTfóbico nas escolas”, critica Benevides.

Discursos como esses, para Bruna, são responsáveis pela falta de discussão dentro das casas, que é responsável pela expulsão de crianças e adolescentes transexuais e travestis. “Quando os pais se deparam com a possibilidade de ter um filho trans, muitas vezes a reação é expulsar de casa. A expulsão acontece, em média, aos 13 anos e é aos 13 que as pessoas começam na prostituição. É um ciclo de violência que vai se somando ao longo da existência, da sobrevivência e na tentativa de resistência dessa pessoa”, explica.

Outro ponto destacado no Dossiê é o tratamento que a mídia dá aos casos de assassinatos de pessoas trans. Segundo a pesquisa, em 2019, 29% dos casos notificados não respeitaram a identidade de gênero das vítimas e 91% dos casos expuseram seu nome de registro.

Para Benevides, não respeitar a identidade de gênero e o nome social de pessoas mortas é cometer um duplo assassinato. “Assim se apaga a história e a própria existência daquela pessoa. É um processo violento que a mídia precisa rever. A exposição do nome de registro é extremamente desnecessária, pois, quem deveria ter o nome exposto, são os assassinos. Mas não vemos a mesma proporção”, pontua.

“Ficamos preocupadas, porque expor o nome de registro de uma pessoa corrobora para um processo de violência e naturalização de uma identidade que não reflete de fato o que essa pessoa é”, finaliza.

Assassinato de pessoas trans cresce 66% no estado de São Paulo, segundo Dossiê Trans