Bolsonaro e o risco de um golpe policial 34

  • Bolsonaro e o risco de um golpe policial

Pedro Ladeira/Folhapress

Renato Sérgio de Lima

Texto de autoria de Rafael Alcadipani*

Todas as vezes em que emerge um arroubo golpista de Jair Bolsonaro, há questionamentos se as Forças Armadas brasileiras bancariam uma aventura autoritária do Presidente. Porém, pouco se tem falado das polícias que, na prática, possuem um efetivo na ativa bem maior do que as próprias Forças Armadas e que, em larga medida, votaram e apoiaram com entusiasmo Bolsonaro nas últimas eleições. O que, em outras palavras, coloca-nos a questão se, a depender das condições políticas, os policiais se rebelariam contra a democracia e ajudariam o presidente a fechar o Congresso e o STF?

Vale relembrar que Bolsonaro utilizou quartéis da PM, unidades da Polícia Civil e da Polícia Federal como verdadeiros palanques. Inúmeros policiais utilizaram e utilizam as redes sociais para defender Bolsonaro e suas ideias. Diante de todo este explícito apoio, com a conivência dos comandos das polícias, a pergunta faz todo sentido. Porém, é preciso perguntar por que policiais apoiam em peso Bolsonaro. Tal apoio se deve a dois fatores principais. Primeiro, policiais se sentem incompreendidos e desconsiderados pela imprensa e pela sociedade em geral. Isso se alia a condições de trabalho extremamente desafiadoras e questões ligadas a baixa remuneração. Segundo, Bolsonaro tem um claro discurso de “bandido bom é bandido morto” algo que é implícita e explicitamente aceito por parte da sociedade brasileira e por policiais. Diante disso, será que este apoio se reverteria em uma sublevação policial pró golpe Bolsonarista?

Para responder a estas perguntas precisamos lembrar que temos várias polícias no Brasil com características próprias e especificidades tanto institucionais-operacionais quanto regionais. Da ditadura para os dias de hoje, todas as forças policiais se profissionalizaram e ficaram mais técnicas. Mas, a Polícia Federal é a polícia mais estruturada, organizada e técnica do país e o seu profissionalismo extremo tende a deixá-la mais longe de aventuras. Porém, o número de policiais federais é muito menor do que de policiais civis e de PMs e teria, sozinha, dificuldades para impedir um movimento golpista das demais instituições policiais.

Nos Estados, temos as Polícias Civis e Militares. As Polícias Civis possuem características culturais muito diferente das PMs. Além disso, elas foram sucateadas ao longo dos anos e hoje estão debilitadas tanto em termos de efetivo quanto de materiais. As Polícias Civis são comandadas por bacharéis em direito, o que lhes gera uma tendência de apoio a institucionalidade jurídica. Além disso, policiais civis tendem a ter uma mentalidade mais flexível e realizaram uma transição mais forte da ditadura para a democracia em suas práticas cotidianas. Na realidade, isso significa que tais instituições estariam menos propensas a seguir uma radicalização política na prática. Porém, o efetivo da Polícia Civil é quase 1/3 do efetivo das PMs.

O grande fiel da balança para um golpe pró-Bolsonaro está nas PMs, pois são as maiores forças policiais do país. Policiais em geral e as PMs em particular tendem a serem vistos de forma única pelas pessoas. A noção de PMs como pessoas pouco estudadas não se sustenta na realidade. Em muitos Estados do Brasil, PMs exigem um diploma universitário para o ingresso na carreira. Há inúmeros PMs graduados em direito, tanto nas praças quanto entre os oficiais. Há uma longa formação nas academias e a progressão na carreira depende de cursos. Os oficiais, em especial, tendem a ser muito bem preparados e capacitados.

Embora Bolsonaro personifique todos os estereótipos que os militares buscam evitar, a defesa do militarismo por Bolsonaro é muito bem-visto dentro das PMs. Mas, seus arroubos cada vez mais frequentes têm reduzido sua aceitação. A despeito dos inúmeros casos de abusos de PMs que surgem na mídia, as instituições possuem em seu curriculum disciplinas de Direitos Humanos. Além disso, a maioria dos milhões de atendimentos das PMs no Brasil não geram não conformidades. As PMs enfrentam um problema importante: a imagem dos PMs políticos eleitos que tendem a ser explícita ou implicitamente pró-Bolsonaro e contra os governadores estaduais colou nas instituições.

Além disso, a boa maioria dos parlamentares das PMs que são eleitos possuem um discurso em prol da violência e dos abusos policiais. Além disso, muitos PMs da reserva radicalizaram o discurso pró-Bolsonaro. A voz dos PMs radicais ecoa muito mais do que a voz dos moderados, principalmente nas mídias sociais. Os comandos das polícias são extremamente lenientes com as postagens radicais de seus policiais e isso afeta a imagem da instituição. Tudo isso gera a sensação de que as PMs fariam qualquer coisa para defender o “mito”. Mas, será?

Muitos oficiais da PM dizem que a “hierarquia e a disciplina são nossa maior virtude e nosso maior defeito”. Diante disso, PMs estariam dispostos a romper a hierarquia e a disciplina, pilares centrais da instituição, para uma aventura Bolsonarista? O rompimento da hierarquia e disciplina pode esfacelar uma organização militar e teria um efeito direto nos comandantes. Além disso, uma tentativa de golpe frustrado teria efeitos devastadores na reputação institucional das PMs e há poucas coisas que um PM respeita mais do que a própria instituição.

Outro ponto a se destacar é que PMs se percebem como pessoas que seguem as leis à risca e respeitam as instituições. Diante disso, é muito pouco provável que instituições policiais brasileiras apoiem uma aventura bolsonarista. A atual geração que comanda as polícias brasileiras ainda sofreu o rechaço social pela atuação de suas instituições na ditadura militar brasileira e sabem que o golpismo gera uma dívida histórica muito difícil de pagar.

Entretanto, nas polícias de nosso país há uma prevalência de questões psicológicas e psiquiátricas que muitas vezes são ignoradas ou negligenciadas. Por isso, há a possibilidade real de que “lobos solitários” extremamente radicalizados atuem em defesa de Bolsonaro de duas formas.

A primeira caso Bolsonaro proponha um golpe, estes elementos radicalizados podem tentar sublevar unidades policiais específicas a favor do Presidente. Muito possivelmente as próprias polícias resolveriam o problema. Mas, haveria uma grande repercussão. A segunda forma seria que algum indivíduo radicalizado e totalmente desequilibrado atentasse contra a vida de um governador, por exemplo. O próprio atentado contra Bolsonaro mostra o risco de um lobo solitário.

Anos de questões salariais e de negligência dos governos estaduais para com as polícias tem gerado tensões entre policiais e governantes. Bolsonaro explora isso muito bem. No atual momento, estas tensões podem aflorar e gerar repercussões desastrosas pela ação de um indivíduo. Se por um lado as nossas polícias tendem a ser garantidores de nossa democracia, por outro a facilidade com que as ideologias autoritárias navegam nestas instituições precisa ser combatida. Afinal, não é nada normal cogitar que polícias possam apoiar um Presidente golpista.

*Professor da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Sem partido e sem rumo, capitão criou uma seita de fanáticos milicianos 5

Ricardo Kotscho

Colunista do UOL

03/04/2020 14h35

A estética é meio assustadora, parece que o país está indo à guerra e convocando os reservistas.

Desde a noite de quinta-feira, circula ferozmente nas redes sociais um cartaz ilustrado com Bolsonaro envergando a faixa presidencial em que se lê:

“Santa convocação do nosso presidente Jair Messias Bolsonaro para um JEJUM NACIONAL. 05 DE ABRIL/PRÓXIMO DOMINGO. “A todos os líderes evangélicos e seus respetivos ministérios, convocamos a todos para esse Jejum Nacional em prol da nossa nação”. Segue um versículo bíblico.

Sem partido, sem base parlamentar, sem comando sobre seus ministros, completamente perdido em meio à pandemia de coronavírus, capitão Bolsonaro apega-se cada vez mais à sua base de crentes fanáticos, cevados pela milícia digital nas redes sociais.

Alguns deles se postam todos os dias à entrada do Palácio da Alvorada para louvar seu líder e hostilizar os jornalistas, eleitos como os grandes vilões, ao lado do governador paulista João Doria, que Bolsonaro acusa de “fazer terrorismo”. Agem e comportam-se como milicianos.

Nesta sexta-feira, não foi diferente. Assim que o comboio presidencial estacionou junto ao cercadinho que separa os dois grupos, sem falar com a imprensa, ao descer do carro o capitão foi direto falar com os devotos da seita bolsonarista e começou a fazer o habitual discurso contra os governadores, a quem acusou de promover desemprego em massa, miséria, fome e violência.

“Chega para cá, pessoal, fica longe da imprensa”. Chamou os jornalistas de “urubus” e, apontando para eles, proclamou: “Eu não cheguei aqui pelo milagre da facada, né? Não ganhei a eleição para perder para esses urubus aí”.

Depois de comparar a pandemia do coronavírus a uma chuva, que vem e que passa, apenas molhando alguns pelo caminho, ouviu sermões e aclamações, como se estivesse num culto neopentecostal, com louvações a Deus e ao capitão, nessa ordem.

A convocação para o “Jejum Nacional” de domingo faz parte desta escalada mística de Bolsonaro nos últimos dias, feito um Antonio Conselheiro redivivo, com um olho nos templos da seita e outro nos quartéis.

Antes de partir, ele contou outra mentira: “A opinião pública está vindo para o nosso lado”, assegurou aos fiéis, na mesma hora em que a XP Investimentos divulgava nova pesquisa, na qual 80% da população aprova o isolamento social defendido pelo Ministério da Saúde, que Bolsonaro tanto combate.

A rejeição ao seu governo subiu para 42% (era de 36% em março) e a aprovação caiu dois pontos, para 28%.

Despencando nas pesquisas e em confronto aberto com todo o mundo civilizado, motivo de chacota na imprensa internacional, 15 meses após a posse Bolsonaro está vendo de perto o fundo do poço em que se meteu.

Só isso explica como ele pode propor jejum a um povo em que o desemprego, a miséria e o desalento não param de crescer, num país onde a fome já faz parte do dia a dia de cada vez mais brasileiros.

“Tirando os pastores, 80% do rebanho está em jejum permanente”, comentou o internauta Alan Barreto Silva no meu Facebook.

Com seus discursos alucinados, ele está fazendo com que já aumente o movimento de gente e de carros nas ruas, exatamente no momento em que se aproxima o pico da pandemia previsto para esse mês.

Em tempo: já foi identificada a professora que pediu ao presidente para colocar o Exército nas ruas e reabrir o comércio, em vídeo divulgado por Bolsonaro.

Trata-se de Fátima Montenegro, empresária de Brasília, militante bolsonarista de raiz, que publicou um vídeo nas redes sociais comemorando a vitória na eleição, com o título:

“O dia em que o Brasil voltou a respirar”.

Estamos vendo…

Assim como no caso do “desabastecimento” do Ceasa de Belo Horizonte, divulgado em outro vídeo presidencial esta semana, e logo desmascarado, trata-se de ficções produzidas pelo “gabinete do ódio” que assumiu o poder de fato.

Posso estar enganado, mas não tem como isso aí, como diz o presidente, perdurar por muito tempo, talkei?.

Não vai ser o jejum que devolverá comida no prato, os empregos e os salários perdidos.

Que falta faz ter um presidente da República, digno do cargo, para comandar o país nesta hora de tantas dificuldades para todos.

A grande farsa está chegando ao fim, espero.

Bom fim de semana.

Vida que segue.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Se tem sangue, me interessa’: as mulheres que querem ser peritas criminais 9

Alunas se preparam para um workshop sobre Local de Crime ministrado por peritos criminais em SP - Marie Declercq/UOL

Alunas se preparam para um workshop sobre Local de Crime ministrado por peritos criminais em SP

Imagem: Marie Declercq/UOL

Marie Declercq

Do TAB

21/04/2020 04h00Atualizada em 21/04/2020 22h10

Pouco antes de a quarentena ser decretada na capital paulista, cerca de 20 pessoas chegaram cedo a um hotel na zona sul da cidade para assistir ao curso “Local de Crime”, ministrado pelo casal de peritos criminais Rodrigo Wenceslau e Débora Lima Colombelli. Ao longo de oito horas, o casal explicou o básico da profissão e as várias etapas do concorridíssimo concurso público, e mostrou fotos explícitas de cenas que viram em Costa Rica (MS), cidade onde estão alocados. Dos 17 alunos, 15 eram mulheres.

A perícia criminal é uma das carreiras da polícia científica, um ramo da atividade policial que aplica métodos específicos para a coleta de provas materiais que ajudam a deduzir a ordem dos fatos e a autoria do crime investigado. Pelos desafios exigidos pela área, como analisar cenas de crimes violentos, manipular cadáveres e correr diversos riscos em locais insalubres, a profissão costuma ser mais associada aos homens.

No curso ministrado pelo casal de peritos mato-grossenses, a presença de mulheres jovens cursando ensino superior em áreas das ciências biológicas era considerável, derrubando o estereótipo de ser uma profissão masculina. “95% das pessoas que nos abordam para perguntar sobre a profissão e fazer nossos cursos são mulheres”, conta Rodrigo Wenceslau. Débora Colombelli, perita especialista em papiloscopia (identificação por impressões digitais), confirma. “Quando comecei, era bem equilibrado o número de homens e mulheres. Hoje vejo muito mais mulheres querendo seguir carreira, não só na parte de criminalística mas também na polícia convencional”, conta.

Na reta final do curso, as participantes tiveram de formar grupos para analisar a cena de crime improvisada por Wenceslau com uma boneca, além de colher digitais no automóvel do casal. Não empolgou tanto quanto as fotos de cenas de crime mostradas através do projetor, com rostos borrados para ocultar a identidade dos cadáveres. “Temos sempre de ser imparciais em nossa profissão, mas ser imparcial não é ser insensível”, conta Colombelli. “No começo da carreira, algumas mulheres podem sofrer um pouco ao entrar em contato com cadáveres e cenas de crimes violentos, mas elas se adaptam rápido. As pessoas que frequentam os cursos me parecem bem mais resolvidas nesse sentido. Ninguém se importa muito com as tragédias, acredito que muitas até gostem de ver. Tenho certeza que foi [a série de tv] ‘CSI’ e a internet que despertaram todo esse interesse na perícia.”

Porta de entrada para a ciência?

No mercado de trabalho brasileiro, as mulheres saem na frente em termos de formação superior, mas a presença feminina em áreas mais voltadas para a atividade científica é menos expressiva. A ciência forense pode representar uma porta de entrada menos convencional nesse campo.

Um fenômeno muito semelhante foi registrado nos Estados Unidos. Em publicações de ciência forense, pesquisadores acreditam que seriados de televisão com temática policial e protagonistas femininas atuando como peritas ajudaram no crescimento da participação de mulheres nessas áreas. Ainda que a presença feminina não seja tão marcante nas áreas STEM (sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), é avassaladora na ciência forense: os principais cursos especializados para trabalhar na área de ciência forense são feitos por mulheres, alguns até somando acima de 70%.

Nayra Reis, presente no curso dos peritos em São Paulo, abandonou o curso de Direito para cursar Farmácia, uma graduação que lhe pareceu mais útil na jornada para se tornar perita criminal. “Quero trabalhar em laboratório na polícia científica”, conta a estudante, que nos últimos três anos vem se preparando para o concurso público. “Já tenho experiência com isso, por causa do meu trabalho. Se eu cair em Local de Crime, tudo bem, mas vai exigir um pouco mais de trabalho psicológico.”

Nathaly Rodrigues Rosa, uma das alunas do workshop de perícia criminal, extrai digitais de um copo durante uma dinâmica do curso - Marie Declercq/UOL
Nathaly Rodrigues Rosa, uma das alunas do workshop de perícia criminal, extrai digitais de um copo durante uma dinâmica do curso

Imagem: Marie Declercq/UOL

Durante o curso, Nathaly Rodrigues Rosa, estudante de Ciências Biológicas, compartilhou sua experiência de testemunhar um caso de violência doméstica grave na própria família. “Não foi minha principal motivação para buscar essa área, mas com certeza a busca pela justiça me dá forças”, afirma. Rosa diz nem considerar uma segunda opção de carreira. Toda a sua preparação acadêmica é voltada para se tornar perita. “A área policial e criminal foi onde me encontrei. Estou disposta a mudar de cidade se abrirem um concurso em outro estado”, diz.

Trabalho sujo, mas apaixonante

As mulheres só começaram a ser aceitas na polícia brasileira a partir da segunda metade do século 20. É natural, portanto, que homens ainda sejam maioria na atividade policial, mas a presença feminina na polícia científica já é considerável nos Institutos de Criminalística de diversos estados brasileiros. No Pará, por exemplo, a polícia científica conta com 45% de mulheres no efetivo. No Rio Grande do Sul, onde a perícia é realizada por um órgão autônomo vinculado à secretaria estadual de segurança pública, mulheres já ocupam cargos de chefia.

“Hoje, no Instituto-Geral de Perícias, as funções de chefias e diretorias são em sua maioria exercidas por mulheres”, conta Mariana Pellizzari, perita criminal do Rio Grande do Sul. “A chefe da Seção de Atendimentos de Locais, a Diretora do Departamento de Criminalística e a Diretora-Geral do IGP-RS são todas mulheres. No meu dia a dia, trabalho com peritas, papiloscopistas, fotógrafas criminalísticas e motoristas mulheres.”

Mariana Pellizzari, perita criminal do Rio Grande do Sul, diz ser apaixonada pelo trabalho, apesar dos desafios - Arquivo Pessoal
Mariana Pellizzari, perita criminal do Rio Grande do Sul, diz ser apaixonada pelo trabalho, apesar dos desafios

Imagem: Arquivo Pessoal

Pellizzari é formada em Medicina Veterinária e trabalha há mais de dez anos como perita criminal em Porto Alegre, a sétima capital mais violenta no país. Nos último cinco, tem se dedicado exclusivamente a atender locais de crime. Para ela, o trabalho é apaixonante. “Às vezes é até um pouco constrangedor dizer que amo atender locais de morte. Tenho compaixão pelas pessoas e pelas situações, lamento as mortes, mas quando atendo procuro ser profissional, afastando o viés emocional do meu trabalho. Tenho paixão pelo atendimento, pela proposição da dinâmica dos fatos, pela busca da verdade e por poder dar voz a quem já não tem: a pessoa morta”, explica.

Em São Paulo as mulheres representam 32,4% dos peritos criminais no Instituto de Criminalística, vinculado à Superintendência da Polícia Técnico-Científica (SPTC). Entre elas está Maria Paula Valadares, trabalhando também há mais de uma década atendendo ocorrências de crimes contra a pessoa na capital paulista.

“Quando entrei percebi, claro, algum machismo, como ir até um local de crime e ser recebida com espanto pelas pessoas por ser mulher e mais jovem na época. (…) As pessoas achavam estranho uma mulher mexendo no cadáver ou tirando um enforcado da corda. Mas o número foi se equilibrando dentro da instituição. Antes a maioria das mulheres mais antigas na instituição trabalhavam nos setores internos, não estavam na rua. Estavam por exemplo nos laboratórios de química e biologia, ou nos núcleos de documentoscopia, que são bastante femininos. Hoje em dia os efetivos dos plantões são bem mais equilibrados. Tem mais mulheres fotógrafas, mais mulheres legistas”, conta Valadares.

A busca feminina pela boa formação acadêmica em áreas relacionadas à ciência forense também é um fator determinante para o crescimento do número de mulheres na polícia científica. “As mulheres estão muito bem formadas, e isso agrega valor para a instituição, porque temos profissionais com mestrado e doutorado ingressando na área”, explica a perita, graduada em Química e doutora em Biotecnologia pela Universidade de São Paulo (USP).

A perita criminal Maria Paula Valadares atende locais de crimes na capital paulista há mais de dez anos - Reprodução/SSP
A perita criminal Maria Paula Valadares atende locais de crimes na capital paulista há mais de dez anos

Imagem: Reprodução/SSP

O interesse nos concorridos concursos públicos para o cargo de perito criminal é alto, mesmo com a rotina puxada do cotidiano da polícia científica. Os plantões passam de 24 horas, ainda há pouca infraestrutura para uma boa investigação e o contato intenso com crimes violentos exige uma estrutura psicológica firme para que o profissional não se deixe afetar. Mas as peritas acreditam que certas características socialmente relacionadas ao gênero feminino, como a atenção aos detalhes, se encaixam perfeitamente nas exigências da profissão.

“Cuidado, atenção e capricho na realização de um trabalho são características muito relacionadas ao feminino na sociedade. E é uma profissão apaixonante, cada vez mais divulgada pelas mídias, redes sociais e até em seriados. (…) Às vezes a pessoa acha o trabalho bonito, mas deve atentar que poeticamente pode até ser bonito, mas na realidade das ruas o trabalho da perícia é exaustivo, arriscado, sujo e impactante. Vemos todos os dias miséria, violência extrema e uma face da sociedade que fica escondida para a maioria, e além de atender os locais elaboramos laudos complexos, criando um volume bastante elevado de trabalho. É preciso vocação e boa equilíbrio mental para trabalhar na área”, afirma Pellizzari.

Marina Ferrarezi busca digitais em uma dinâmica do curso de perícia criminal. Estudante de Biomedicina, quer seguir carreira de perita e adora assistir vídeos no YouTube sobre crimes verdadeiros - Marie Declercq/UOL
Marina Ferrarezi busca digitais em uma dinâmica do curso de perícia criminal. Estudante de Biomedicina, quer seguir carreira de perita e adora assistir vídeos no YouTube sobre crimes verdadeiros

Imagem: Marie Declercq/UOL

Interesse pelo gênero “true crime” também é predominantemente feminino

As alunas do curso têm diferentes motivos para desejar seguir uma carreira de perita criminal, mas uma característica em comum é gritante: todas são ávidas consumidoras de séries, podcasts, livros e canais de YouTube sobre crimes verdadeiros, gênero conhecido como “true crime”.

“Gosto muito de acompanhar canais de YouTube sobre crimes. Em especial sobre serial killers, sobre os quais eu adoro pesquisar. Uma época fiquei bem interessada na história do Ted Bundy, mas virou moda”, conta Marina Ferrarezi, estudante de Biomedicina.

“Se tem sangue, eu me interesso”, revela Cristiane Reis, administradora de pet shop que está estudando para prestar concurso. “Nunca assisti novelas, mas acompanho matérias jornalísticas. Sempre assisto esses telejornais com notícias de mortes. (…) Pode parecer meio mórbido, mas quando era criança eu adorava acompanhar enterros. Sempre queria entender como a pessoa morreu, o que era aquela marca roxa na pele do defunto. Fiz curso técnico de enfermagem para entender algumas coisas. A parte macabra da profissão é o de menos pra mim.”

Grande parte das mulheres presentes no curso mencionou os filmes “A menina que matou os pais” e “O menino que matou meus pais”, cujos lançamentos foram adiados por causa da pandemia, e contam a história de Suzane von Richthofen e dos irmãos Cravinhos. O roteiro é assinado por Raphael Montes e pela escritora e criminóloga Ilana Casoy, uma das mais conhecidas especialistas brasileiras em mentes criminosas.

Ivan Mizanzuk, idealizador dos podcasts “AntiCast” e “Projeto Humanos”, diz que se impressionou com a grande audiência feminina que a quarta temporada do “Projeto Humanos” conquistou investigando o assassinato brutal do menino Evandro Ramos Caetano, cometido em 1992 no litoral do Paraná, supostamente por um culto satânico.

“Minha audiência em “O caso Evandro” teve picos de audiência feminina que ultrapassaram 50%”, conta. “Em um primeiro momento não parece grande coisa, mas segundo a Podpesquisa, o público de podcasts é bastante masculino. Em 2018 era 84% masculino, e em 2019 passou para 72% masculino e 27% feminino. Ainda são poucas as mulheres que escutam podcasts. Sabemos disso porque os podcasts brasileiros vêm de uma cultura nerd, um grupo um pouco complicado para mulheres. (…) Por isso, quando vejo a média de ouvintes mulheres no Brasil e vejo que metade da audiência de “O caso Evandro” é feminina, é muita coisa.”

Em alguns episódios de “O caso Evandro”, Mizanzuk narra detalhes macabros e bastante chocantes do crime, afastando os mais fracos de estômago. “O curioso é que muitos homens entraram em contato dizendo que não conseguiam ouvir o programa porque eram pais. Com as mulheres ouvi relatos parecidos, mas ao mesmo tempo lembro sempre de uma ouvinte dizendo que era viciada no podcast por ser uma coisa que ela podia ouvir enquanto amamentava o filho (risos).”

O interesse por true crime não se restringe apenas a quem deseja seguir carreira na polícia. Segundo escritoras que exploraram o grande interesse feminino em crimes macabros, múltiplos fatores explicam esse fenômeno — mas sem oferecer nenhuma resposta fácil.

“Uma explicação comum é que histórias de crimes verdadeiros permitem que mulheres explorem sua vulnerabilidade e falem a respeito dela. Ler um caso sobre um stalker que assassinou a namorada pode ser uma forma de uma mulher processar as próprias ansiedades”, especulou Rachel Monroe, jornalista dos EUA que escreveu um livro sobre o tema, em entrevista ao jornal inglês The Guardian.

Assassinato, ela escreveu

Na ficção, não são poucas as personagens femininas que se debruçam sobre crimes violentos para descobrir os responsáveis. Agatha Christie, a mais notória escritora do gênero policial, criou a detetive amadora Miss Jane Marple em contraponto ao rabugento policial belga Hercule Poirot. Nos livros de Thomas Harris, a agente do FBI Clarice Sterling se consulta com Hannibal, o sofisticado serial killer antropófago. Na televisão são inúmeros os exemplos de mulheres trabalhando com investigação policial, como as investigadoras da equipe do “CSI: Las Vegas”, a investigadora de crimes sexuais Olivia Benson em “Law & Order: Special Victims Unit” e assim por diante.

Diorama de uma cena de crime feito por Frances Glessner Lee, considerada "mãe da ciência forense", para treinar investigadores policiais - Lorie Shuall/Wikimedia Commons
Diorama de uma cena de crime feito por Frances Glessner Lee, considerada “mãe da ciência forense”, para treinar investigadores policiais

Imagem: Lorie Shuall/Wikimedia Commons

Mulheres conduzindo investigações criminais com o sangue frio necessário para analisar uma tragédia não marcam presença somente na ficção. Mulheres também foram responsáveis pelo avanço da área no mundo real, como no caso de Frances Glessner Lee, cientista norte-americana considerada a “mãe da ciência forense” por ter inventado os dioramas — pequenas casas de bonecas que reproduzem cenas de crimes. Os dioramas são usados até hoje para treinar investigadores de homicídios e desenvolver suas habilidades de observação em cenas de crimes reais.

A antropóloga forense Clea Koff é outro nome ilustre da área, por ter trabalhado com uma equipe designada pela ONU para exumar corpos das vítimas dos genocídios de Ruanda e posteriormente no Kosovo. Koff trabalha hoje em Los Angeles com identificação de cadáveres de identidade desconhecida, e publicou um livro sobre sua profissão chamado “Bone Woman” (“Mulher dos Ossos”, em tradução livre).

Errata: o texto foi atualizado
A primeira versão deste texto afirmava que o município de Costa Rica fica em Mato Grosso. Na realidade, ele fica em Mato Grosso do Sul.