
O noticiário da manhã trouxe em letras garrafais o drama de uma esquina qualquer.
No cruzamento acanhado, entre a embriaguez e o descuidado consigo e com outrem , um idoso aposentado atropelou uma ciclista ao sair de um estabelecimento de portas discretas e luzes azuis e avermelhadas.
Detalhe : com uma garota nua que inopinadamente – talvez com muitos pinos, ou falta de, na cabeça – resolveu sentar-se no colo do cliente.
Não fosse o destino, seria apenas mais um hilário acidente, perdido entre tantos outros registros secos do cotidiano.
A manchete, cortante, lança o leitor para o julgamento imediato.
O verbo não se detém nos detalhes da dinâmica do acidente ou mesmo na morte da ciclista, mas na periferia do cenário – a idade ( não tão avançada ) – a condição de aposentado, o local que a cidade finge não ver.
Mas muito bem frequentada !
A narrativa já está montada: um inesperado tropeço tardio , talvez de moral, talvez do destino.
Talvez de quem por toda a vida teve conduta ilibada e , agora , aposentado e com certa idade , resolveu se permitir certas libações.
Seu único erro: não ir e vir de táxi!
Fosse esse homem qualquer um de nós, um invisível do bairro, provavelmente pouco se diria além do quase folclórico.
Seria quando muito “mais um caso”; provavelmente apenas um boletim de ocorrência sem prisão como se faz na imensa maioria dos atropelamentos.
Mas, uma vez ou outra, o acaso confere o nome ao anonimato.
Quando o idoso em questão é ex-juiz, o peso se instala de um jeito diferente.
Esquecemos a vítima, o acidente e preferimos narrar a biografia, o contracheque vultoso , resgatar processos arquivados e sentenças passadas.
O que era indivíduo tornou-se instituição, o erro vira símbolo, e a justa medida humanizada se desfaz sob a avalanche do julgamento coletivo.
Mas, ao fim, permaneceu no asfalto as marcas de sangue e o eco de uma dor que não cabe em títulos nem posições morais.
A tragédia, para além das narrativas, é sempre de pessoas: de quem se acidenta, de quem provoca, de quem testemunha, dos familiares e amigos de ambos e de quem lê com empatia.
Numa cidade feita de encontros e desencontros, todo mundo carrega sua história ; e merece muito mais do que a relatada pela vida privada ou pelo ofício.
Por trás da notícia, segue a vida daquele idoso com acertos, tropeços, desejos e medos, como qualquer outro.
A manchete ruge muito mais contra a magistratura e seus invejáveis vencimentos , mas o silêncio do cotidiano logo retorna, cobrando dos que julgam o difícil exercício da empatia.
Porque, antes de profissões ou manchetes, somos todos, necessariamente, humanos sujeitos a cruzar seus próprios limites nos desvios da vida.
Poderia ter acontecido comigo e com tantos outros idosos solitários com sede de alguma diversão que lhes devolvam a alegria da juventude.
Deixo o alerta: vá de Taxi e durma no puteiro até a bebedeira melhorar.
Também alerto alguns juízes e juízas que parecem ter prazer sádico de transbordar do julgamento jurídico para o julgamento moral: amanhã pode ser com você!
“O que você faz quando
Ninguém te vê fazendo ?
Ou o que você queria fazer
Se ninguém pudesse te ver” ?( Capital Inicial )
Como o Flit não pode deixar de ser o Flit; se não fosse pela tragédia apenas diria:
Esse juiz aposentado é dos nossos!
Dinheiro é para torrar e nada como a fantasia de ser Xerife ou Ministro na Zona…
( mas de táxi )