A Mclaren e a Memória do Velho Soldado 10

Na sala modesta de um apartamento antigo, repousa uma foto amarelada: um policial militar dos anos 80, farda surrada, olhar cansado, mas digno.

Era de um amigo, daqueles tempos em que ser PM significava viver no limite – de salário, de esperança, de reconhecimento.

Em sua casa, como em tantas outras, faltava quase tudo, menos honestidade.

Carro?

Só nos sonhos ou no bico como taxista. .

Escola, só pública.

O convênio, restrito à Cruz Azul.

O luxo era a roupa lavada, uma cerveja e o macarrão com frango no domingo.

Hoje, a paisagem mudou.

O noticiário estampa o caso do tenente Fernando Genauro da Silva, preso e acusado de envolvimento com o PCC e CV.

Assassino de aluguel !

O que chocou a opinião pública não foi apenas o crime em público deboche , mas o que veio depois: cinquenta dias após o homicídio, Genauro comprou uma McLaren 570S Spider, avaliada em R$ 2,2 milhões, prometendo quitar a dívida em 12 parcelas.

 “Não resisti, mano”, confidenciou a um contato, segundo o laudo pericial requisitado pelo DHPP.

A imagem da McLaren reluzente, motor bi turbo, cor de ouro líquido, corta a avenida como um míssil britânico.

O contraste é gritante: enquanto filhos de PMs do passado disputavam vaga em escola pública, hoje há oficiais ostentando carros de luxo, filhos em colégios particulares, casas de alto padrão, roupas de grife.

 O abismo entre a velha e a nova polícia nunca foi tão visível – e tão ruidoso.

O caso do tenente e sua McLaren de R$ 2 milhões não é isolado.

Os novos policiais  –  civis e militares – ostentam nas redes sociais carros de luxo, viagens, festas, mansões.

O dinheiro circula fácil, a origem nem sempre é clara.

Para muitos, o sonho do serviço público virou bilhete premiado.

Mas a que custo?

O velho PM, aquele da foto amarelada, talvez não reconhecesse mais a farda que um dia vestiu com orgulho.

Talvez, sentado à mesa simples, ele se perguntasse: “Quando foi que a honra deu lugar ao luxo?

No fim, esta crônica policial se escreve entre extremos: a dignidade silenciosa dos que serviram com sacrifício e a ostentação ruidosa dos que se perderam no caminho.

A McLaren do tenente é só um símbolo: veloz, brilhante, mas, como toda ilusão, passageira.

O que fica mesmo é a memória – e o preço que cada um escolhe pagar por ela.

Um Comentário

  1. Que texto!!!!! Que realismo nas palavras muito bem articuladas, mostrando um paradoxo no meio policial.

    Conheci e trabalhei com inúmeros policiais humildes mas extremamente honrados !!!…voltei no tempo!!

    Esse texto é significativo demais para muitos e muitos policiais que “se matavam” em bicos perigosos. Aliás, é um reconhecimento como poucas vezes vi.

    Dr Guerra sempre impecável!

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  2. Fantastico seu texto Dr Guerra, brilhante, lembrei de meu pai e tios , na PM e na Cívil, em época difícil mas de homens honestos .Parabéns.

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  3.          Amigo Guerra, a foto da viatura corcel da rodoviaria me fez regredir no tempo, os Volks 1300, os voyages com chiqueirinho, os opalas e caravans e é claro, a lendaria C-14, tudo guardado lá num cantinho da memoria, as dificuldades, as alegrias simples, alguns colegas verdadeiros, la guardados também.
    
             Hoje, 40 e alguns anos após, já inativo, ainda vivo e com minha integridade intacta, nunca fui a corregedoria por conta de “J”, vejo as conversas dos novos colegas, as aspirações, só ilusão…
    
             Quando, em algum momento do futuro se der conta, já foi a integridade, a dignidade e talvez a liberade também, isso se não levar de arrasto, esposa, filhos e amigos.
    
             No derradeiro dia, nada levaremos conosco, tudo que amealhamos de forma lícita ou não, aqui ficará, junto com suas venturas, qualidades e em alguns casos, só defeitos e recalques.
    
             A vaidade nunca caiu bem aos homens, se bem que agora tudo mudou, então o que fazer…
    
             Amizades fúteis e interesseiras, mulheres voluveis, colegas verdadeiros como nota de 3 reais, mas é o que temos para o momento e sigamos em frente, pois quem para a vida atropela.
    

    C.A

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  4. Prestes a completar 69 anos de idade, desde o início da minha adolescência eu já ouvia falar de corrupção policial. Aos 15 anos de idade, dirigindo um caminhão velho GMC, fazendo entregas de materiais de construção na periferia da periferia de SP, vendidos na loja de meu pai – que iniciara no comércio 4 anos antes, com todas as dificuldades de quem vinha da profissão de ferreiro (primeiro colocando ferraduras em cavalos e depois fazendo correntes para navios) -, fui parado por uma “baratinha” preta e laranja, com dois policiais militares dentro. Dei-lhes o pouco dinheiro que carregava no bolso e fui liberado, para terminar as entregas. Ao prestar contas para meu pai sobre o dinheiro, levei uma dura reprimenda, tanto por estar dirigindo no lugar do motorista que faltara, quanto por ter feito o “acerto”. Vc estava trabalhando!, disse-me ele aos berros. Meses depois, em situação semelhante na Av. Parada Pinto, no bairro de Vila Nova Cachoeirinha, fui parado numa blitz de policiais da ROTA. Não teve conversa (muito menos “acerto”! Fui levado com o velho caminhão câmbio “seco” (eu dirigindo), e os materiais de construção que se encontravam na carroceria, para o o 40º DP. Ali, no plantão daquele sábado início de noite, o Dr. Hélio Bernardes Cabral, que mandou chamar meu pai ao plantão para liberar-me e também o caminhão e os materiais. Ali, numa ameaça infeliz, feita na presença de policiais civis, dos policiais da ROTA que me conduziram, e até de alguns que por ali estavam a esperar, o delegado me disse em voz alta, que se fosse novamente pego dirigindo me “daria um tapa na cara”. Em resposta, e na presença de todos, meu pai gritou-lhe, ele estava trabalhando; cumpra sua ameaça agora e não sairá deste plantão vivo (eu o mato!). A “turma do deixa disso” entrou no meio, os policias da ROTA riam de canto, e tudo foi resolvido pelo “chefe dos investigadores”, a mando do titular na época. Pareceu-me que teve um “novo acerto” ali! Enfim, cerca de 30 anos depois, eu já juiz, meu pai já falecido, e o tal Dr. Hélio Bernardes Cabral “já” titular do 40º DP, estive naquela unidade para retirar uns documentos perdidos e rapidamente encontrados e ali entregues. Ao saber que dentre aqueles documentos havia uma “carteira de juiz” (com brasão e tudo!), o Dr. Hélio fez questão de me entregar pessoalmente e dizer-me: “espero que um dia se lembre desta gentileza!”. Não vou esquecer, mesmo porque não me esqueço de nada! E a vida assim segue, com muitas histórias, e nos âmbitos policiais a maioria delas envolvendo “ajeites”, “acertos”, “corrupção”. Isso, nas Polícias, já não são novidade alguma! As novidades começam a aparecer no Ministério Público e mais ainda no Judiciário. E se formos começar pelo topo, eu diria que, como pode os ministros do STF ganharem cerca de 50 mil reais por mês e levarem vida de milionários?! Querem falar sobre isso? Eu topo!…

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    • Dr. Tovani,

      Concordo , desde sempre há corrupção nas polícias; desde o guarda de trânsito ao Comandante Geral e do ganso ao DGP.
      A novidade é que, nos dias de hoje , perdeu-se o termometro da dignidade.
      De qualquer forma, a postagem diz respeito a um simples tenente da PM que , evidentemente, é um mercador da morte. Tenho convicção que a execução do “delator do PCC”. não foi o primeiro homícidio que esse cara praticou mediante peita!
      A PM nunca foi “reserva moral” de coisa alguma , mas esse oficial extrapolou todos os limites.
      Aparentemente, ele tinha absoluta certeza de impunidade !

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