Há 98 (noventa e oito) anos – no Rio de Janeiro – teve lugar uma dos mais infelizes episódios de nossa história: a revolta da vacina. Naquela ocasião, a desinformação generalizada de uma população majoritariamente ignorante e analfabeta dificultou sobremaneira a ação governamental direcionada à vacinação compulsória da população para a erradicação da varíola, bem como para o combate da febre amarela e outras pestes que assolavam a então Capital Federal.
Contudo, a revolta popular não se restringia ao medo da seringa, ou da agulha da injeção: ao contrário, a população pegou em armas, revoltada que ficou com desapropriações de edifícios no centro do Rio, que em sua maioria constituíam-se em habitação coletivas (cortiços), que posteriormente deram lugar à imensa reforma urbana que se materializou em largas avenidas e bulevares.
Quanto à vacina, propriamente dita, segundo os historiadores, a revolta da população residia em dois aspectos distintos:
(i) a obrigatoriedade e
(ii) o perdimento da privacidade, pois tudo que é obrigatório, em geral causa descontentamento, e, o que é obrigatório e invade a privacidade, geralmente causa revolta.
Ora, imaginem – no início do século XX – um pai de família, católico e tradicionalista (tradição derivada do tempo do imperito, recentemente derrubado pela república), pobre ou rico, se ver obrigado, ele próprio, a mostrar partes intimas de seu corpo, para serem espetadas por agentes de saúde…
Imaginem mais: este mesmo pai de família permitir que sua esposa e filhas também revelassem suas partes pudicas aos sobreditos agentes, para o mesmo fim…
Era revoltante!
Ocorre que as medidas saneadoras do governo, naquela ocasião, indiscutivelmente eram necessárias, todavia, o que se criticou foi a forma como foram adotadas…
Mediante violência! “Na marra”!
Na ocasião, inclusive, tropas federais e estaduais foram empregadas para debelar a ação da população revolta.
O saldo: a morte de várias pessoas, a prisão de outras tantas, que inclusive, ao que consta, foram “deportadas” para o longínquo então território do Acre.
Centro de São Paulo em janeiro de 2012: Parece uma edição Piratininga da Revolta da Vacina…
Dezenas de policiais militares mobilizados para tomar de assalto determinada região da capital, que em razão do descaso do governo estadual, notadamente nos últimos 17 (dezessete) anos, passou a ser conhecida como “cracolândia” (terra ou território do crack).
Pois bem, no centro da cidade mais desenvolvida e rica do Brasil e uma das maiores metrópoles de todo o mundo, há alguns quarteirões habitados por indigentes, que o estado de São Paulo esqueceu-se de acudir nos últimos 17 (dezessete) anos…
Todos sofreram com isso:
(i) a prefeitura, com o acumulo paulatino de indigentes na região, tratando-se de homens, mulheres e crianças habitando cortiços e logradouros públicos, em busca dos baratíssimos cristais de crack;
(ii) comerciantes e proprietários de imóveis da região, que viram seus negócios prejudicados e seus bens desvalorizados em razão da “criação” de uma verdadeira “zona franca” de consumo de crack naquelas imediações, também e sobretudo por negligência do governo do estado;
(iii) a população que acuada, deixou de freqüentar aquelas imediações, com medo dos assaltos promovidos pelos usuários enlouquecidos pela droga;
(iv) a segurança pública, que desmoralizada por não conseguir debelar o tráfico naquelas imediações, passou a ser considerada conivente, muito embora, na maior parte das vezes não o fosse.
Enfim, ninguém lucrou com a cracolândia, senão alguns traficantes, que por seu turno, também acabam assassinados por rivais, numa sucessão de crimes que não tem fim.
Foi nesse diapasão, que no passado o governo municipal e o governo do estado chegaram a por à pique uma quadra inteira na região, para desalojar usuários e traficantes que habitavam infectos “hotéis de viração” e não menos infectos cortiços. Ainda se pode ver a área demolida, pois nada lá foi construído até agora.
Então, novamente o município e o estado, juntamente com o poder judiciário, defensoria pública e ministério público decidiram tomar providências para erradicar de vez problema do crack no centro de São Paulo.
Tudo parecia adequado: o Estado entraria com a Polícia Militar, apoiada por Juízes e Promotores. O município com assistentes sociais e vagas para internação de viciados.
Parecia um “relógio suíço”!
Ação de primeiro mundo…
Só que alguém se precipitou!
Antes da hora “H” do dia “D” definidos pela prefeitura e pelo estado para deflagrar a operação, um contingente de Policiais Militares tomou de assalto a cracolândia, e como se fosse impossível deter todos os viciados e traficantes que por lá transitam e habitam, os policiais militares viram suas presas escaparem por entre seus dedos, para fugirem para regiões periféricas aos “Campos Elíseos”, desta feitas, viciados e traficantes se refugiando em bairros nobres como Higienópolis, Pacaembu, Perdizes, Barra Funda e adjacências…
A operação deflagrada pela Policia Militar poderia ser apelidada de “operação metástase”, eis que espalhou um problema crônico, de um determinado e isolado ponto do mapa municipal, para vários bairros que até então não sofriam com esse tipo de problema…
E o próprio Comandante da Polícia Militar foi pego de surpresa, porque a ação foi ordenada por um subordinado, sem prévia consulta ou autorização!
O prefeito ralhou, o governador se disse surpreso e o Secretário afirmou que nada sabia. Depois disseram que foi mero desencontro, mas na verdade, o que se verifica é ausência de unidade de comando!
Aí o Ministério Público – com toda a razão – reclama e instaura inquérito, e o Secretário chama os promotores de pirotécnicos e oportunistas, sendo que ele próprio pertence àquela instituição…
Guardas Civis Metropolitanos reclamam da defensoria pública, que distribuiu panfletos alertando os dependentes químicos, sobre os seus direitos civis, o que, em tese teria comprometido a operação de contenção, como se alertar pessoas sobre seus direitos, prejudicasse ações policiais…
Só se forem ilegais e abusivas!
Enfim, enquanto ninguém se entende, tiros de projéteis de borracha são disparados, bombas de efeito moral são detonadas, pessoas são algemadas e presas, enquanto os traficantes, como ratos, abandonam o local para iniciar novas vendas em outros rincões…
Nesse meio tempo, uma única equipe do tão criticado DENARC, numa só “tacada” apreendeu mais droga, que todo o efetivo Polícial Militar destacado para a fracassada operação “dor e sofrimento” (ou algo do gênero)…
Isso sem disparar um tiro!
De outro lado, a imprensa divulga imagens de indigentes desesperados (provavelmente viciados em abstinência), correndo de um lado para o outro, como zumbis de um filme “D” de terror.
Eis a pergunta que assalta a mente de todos: Quem realmente deu a ordem?
Luiz Antonio Saboya Chiaradia
Advogado Criminalista