É AGORA, JOSÉ?…JOSÉ, E AGORA? 22

Brasil

É agora, José?

Em queda nas pesquisas, José Serra explora o grave crime da violação do sigilo fiscal de sua filha Veronica para tentar levar a eleição presidencial para o segundo turno

Alberto Bombig, Andrei Meireles, Leonel Rocha, Leandro Loyola, Mariana Sanches e Wálter Nunes

Com a vantagem da ex-ministra Dilma Rousseff (PT) sobre o ex-governador José Serra (PSDB), oscilando em torno dos 20 pontos porcentuais, a eleição presidencial parecia caminhar para um desfecho previsível no primeiro turno. Na semana passada, o escândalo da quebra ilegal de dados fiscais de tucanos, cujo sigilo deveria ser preservado pela Receita Federal, se agravou com a revelação de que a filha de Serra, a empresária Veronica Serra, também foi alvo de uma violação. A campanha de Serra, que estava sem rumo e sem discurso para enfrentar a candidata de um governo com índices de aprovação superiores a 70%, passou a ter uma bússola de orientação e ganhou um alento para tentar evitar que a disputa seja encerrada no próximo dia 3 de outubro, com a vitória de Dilma.

O efeito eleitoral do escândalo ainda é incerto. Muitos tucanos alimentam dúvidas se conseguirão mudar a rota da campanha com um caso distante do cotidiano da maioria dos eleitores, que anda animada com as facilidades de crédito, a expansão do poder de consumo e o crescimento da economia (entre abril e junho, o PIB cresceu 8,9%, em comparação com o mesmo período do ano passado). Mas, apostando na possibilidade de que a violação possa ser para Serra o que o episódio dos aloprados (como ficaram conhecidos os petistas presos em flagrante ao tentar comprar, com dinheiro de origem ilegal, um dossiê contra tucanos) representou para Geraldo Alckmin em 2006 contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva – uma brecha para arrastar a disputa eleitoral para um segundo turno –, resolveram levar o caso para o palanque. Na quinta-feira à noite, o programa de Serra no horário eleitoral gratuito de televisão foi praticamente todo dedicado ao escândalo da violação. A decisão de abordar o tema foi tomada pelo próprio Serra e pelo responsável pela comunicação da campanha tucana, Luiz Gonzalez. Ao mesmo tempo, o PSDB pediu à Justiça Eleitoral a cassação da candidatura de Dilma, o que foi imediatamente arquivado por falta de provas.

Para comover os eleitores de renda mais baixa, que têm pouca ou quase nenhuma familiaridade com declarações de Imposto de Renda e outros assuntos ligados à Receita, o programa na TV procurou usar uma linguagem simples. “É como se alguém usasse a sua senha de banco, vasculhasse a sua conta, invadisse a sua casa, revirasse suas gavetas, só para te prejudicar”, disse o apresentador do PSDB. Em seguida, logo após a exibição de cenas em que o ex-presidente Fernando Collor, candidato do PTB ao Senado por Alagoas, pede votos para Dilma, o apresentador comparou a quebra de sigilo de Veronica Serra a um episódio da campanha presidencial de 1989. Na ocasião, o então candidato Collor de Mello, em seu programa do horário eleitoral na televisão, acusou Lula de ter abandonado a filha Lurian, fruto de um namoro com Miriam Cordeiro. “A mesma baixaria contra a filha de Lula agora é usada para prejudicar o Serra”, disse o apresentador. Serra também surgiu na tela para comentar a quebra de sigilo: “Lembra o Francenildo? Aquele caseiro de Brasília que teve seus extratos bancários violados pelo governo. Se continuar assim, todos nós seremos Francenildos”, afirmou, em alusão à quebra do sigilo de Francenildo Costa, em 2005, pivô do escândalo que derrubou o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci – hoje o principal coordenador da campanha de Dilma.

De acordo com integrantes da equipe de comunicação de Serra, as pesquisas qualitativas e as sondagens telefônicas realizadas durante e após a exibição do programa mostraram que o programa foi bem avaliado pelos eleitores, mas ainda não há uma estratégia definida de como Serra continuará a abordar o assunto daqui para a frente. Os tucanos depositam também as esperanças em que apareçam as digitais de petistas e de integrantes da campanha de Dilma na quebra do sigilo de Veronica e de outros tucanos ligados a Serra cujos dados fiscais foram violados – o vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge Caldas Pereira, o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, o ex-diretor do Banco do Brasil Ricardo Sérgio de Oliveira e o empresário Gregório Marin Preciado. Apesar dos alentados antecedentes de envolvimento de petistas em dossiês e armações para prejudicar adversários (leia o quadro abaixo), da incompetência da Receita Federal em preservar o segredo fiscal de contribuintes e dos evidentes contornos político-eleitorais da violação, essa participação de petistas ou de integrantes da campanha de Dilma na quebra de sigilo como acusam os tucanos ainda precisa ser comprovada. Não está claro quem está por trás da ilegalidade.

A quebra do sigilo fiscal de Veronica Serra foi feita em 30 de setembro de 2009 na agência da Receita Federal em Santo André, no ABC paulista. A funcionária Lúcia de Fátima Gonçalves Milan forneceu os dados fiscais de Veronica ao contador Antonio Carlos Atella Ferreira. Ele levou à agência uma procuração supostamente assinada por Veronica e com firma reconhecida em cartório. A procuração era uma falsificação grosseira (leia o quadro abaixo). Dono de quatro CPFs e modos debochados (ele passou a cobrar publicamente dinheiro para dar entrevistas depois que seu nome foi parar nos jornais), Ferreira tem um escritório especializado em “pesquisa de Receita”. Ele afirma que não sabia quem era Veronica. Segundo Ferreira, os dados fiscais da filha de Serra foram pedidos a ele pelo colega Ademir Estevam Cabral, que trabalha como despachante num escritório acanhado do centro de São Paulo. O pedido seria mais um de um total de 18 que Ferreira diz ter recebido de Cabral e seria entregue a “um pessoal de Brasília e Minas”. Cabral negou ter feito a encomenda dos dados fiscais de Veronica e disse apenas que “trabalha com frequência para advogados”.

Cabral, de 52 anos, era motorista até quatro anos atrás. Depois, começou a fazer o “trabalho de abrir e fechar firma em São Paulo”, na definição de sua ex-mulher Aliade. Aliade e Cabral têm dois filhos e uma neta e moraram juntos por 20 anos. Estão separados há dois meses. “Tudo o que ele tem é um Fusquinha verde velho. Às vezes ele não tinha nem dinheiro para pegar o trem para ir trabalhar em São Paulo.” Segundo Aliade, o dinheiro que Cabral conseguia trabalhando como despachante em São Paulo não era suficiente para as despesas. Então, diz ela, ele costumava comprar bebida alcoólica no atacado para revender para bares em Francisco Morato, cidade da região metropolitana de São Paulo. “Ele não sabe nem ler direito, não tem nem 8ª série. Quem faz esse negócio aí é quem tem estudo. Ele nunca nem mexeu em computador.”

A quebra de sigilo teria sido encomendada, segundo contador, por “um pessoal de Brasília e Minas”

A quebra de sigilo de Veronica seguiu um roteiro diferente da sistemática seguida na violação dos dados fiscais dos outros tucanos. Os sigilos de Eduardo Jorge, Mendonça de Barros, Ricardo Sérgio e Marin Preciado foram quebrados juntos. Em acessos sequenciais, entre as 12h27 e as 12h43 do dia 8 de outubro do ano passado, a senha da servidora Antônia Aparecida dos Santos foi usada no computador da auxiliar de informática Adeildda Ferreira Leão dos Santos, na agência da Receita Federal na cidade de Mauá, também localizada no ABC paulista, para obter os dados dos quatro. Como não havia nenhum procedimento formal que justificasse esses acessos, eles são considerados “imotivados” e podem render punições para Antônia e Adeildda. A Receita Federal disse publicamente suspeitar da existência de um balcão de venda de dados sigilosos nos postos fiscais no ABC paulista, em torno do qual orbitam escritórios de advogados, contadores e despachantes. Um indício que reforça a suspeita de um mercado ilegal é que, no mesmo dia 8 de outubro, foram quebrados na agência de Mauá os sigilos de 140 pessoas – entre elas celebridades sem envolvimento com a política, como a apresentadora de TV Ana Maria Braga.

O que permite aos tucanos apontar o dedo para o PT no escândalo da violação é uma reportagem publicada em junho pelo jornal Folha de S.Paulo, revelando que informações fiscais e bancárias de Eduardo Jorge faziam parte de um dossiê em poder de integrantes do “núcleo de inteligência” da campanha de Dilma. Do dossiê a que teve acesso o jornal, além dos dados de EJ, que deveriam ser mantidos sob sigilo, constavam também papéis a respeito de outros alvos da violação como Veronica Serra, Ricardo Sérgio, ex-arrecadador de campanhas tucanas, e Marin Preciado, ex-sócio de Serra e casado com uma prima dele. Desde então, a campanha de Dilma nega ter qualquer envolvimento com a quebra ilegal dos sigilos. O núcleo de inteligência foi desmontado pela própria campanha, depois que foi revelado que o jornalista Luiz Lanzetta, contratado para cuidar da estrutura de comunicação, estava negociando com conhecidos arapongas de Brasília um esquema de espionagem e contraespionagem, que, além de tucanos, tinha até petistas como alvo.

Na negociação com os arapongas, ao lado de Lanzetta estava o jornalista Amaury Ribeiro Jr. Amaury participou, desde o início do ano, também das discussões sobre a criação do “núcleo de inteligência”. Ele ganhou prêmios por reportagens investigativas e, até o final do ano passado, trabalhava para o jornal O Estado de Minas, onde foi orientado a fazer investigações sobre pessoas ligadas a José Serra, em que fez viagens internacionais a paraísos fiscais. Desde a CPI do Banestado (2003-2004), que investigou remessas de dinheiro ao exterior, Amaury colecionava informações sobre Veronica Serra, Ricardo Sérgio e Marin Preciado. O interesse de O Estado de Minas nas investigações pode estar relacionado ao apoio entusiasmado que o jornal deu ao projeto de candidatura presidencial do ex-governador mineiro Aécio Neves, que travou, até o final do ano passado, uma disputa interna no PSDB com Serra em torno da escolha do candidato dos tucanos à Presidência. Na ocasião em que houve a violação dos fiscais, a disputa interna entre os tucanos estava no auge. ÉPOCA tentou contato com a direção de O Estado de Minas, mas não obteve resposta.

A várias pessoas, Amaury, depois de sua saída de O Estado de Minas, disse que pretendia levar para a campanha de Dilma o resultado de suas investigações. Além de seu contato com Lanzetta, Amaury tem relações pessoais e familiares com o deputado Virgílio Guimarães (PT-MG). No escândalo do mensalão, Guimarães ficou conhecido por ter sido quem apresentou ao PT o empresário Marcos Valério, o operador do esquema do repasse de dinheiro para partidos e parlamentares ligados ao governo Lula. Na atual campanha, Virgílio voltou ao noticiário pela amizade com o empresário Benedito Rodrigues de Oliveira, que também participou da organização da pré-campanha de Dilma e da reunião com os arapongas para a montagem do grupo de inteligência.

ÉPOCA ouviu Amaury antes e depois do escândalo. Nas duas ocasiões, ele disse que trabalhava para a pré-campanha de Dilma, mas não esclareceu se tinha contrato ou se recebera algum pagamento. Disse também que se hospedava em um hotel de Brasília, cujas diárias seriam pagas pela pré-campanha. A versão oficial da campanha de Dilma é que Amaury ofereceu suas investigações, mas não chegou a ser contratado nem recebeu despesas de hospedagem do comitê. Amaury diz agora que pretende usar suas investigações em um livro sobre as privatizações feitas no governo Fernando Henrique Cardoso e nega que tenha obtido informações de forma ilegal ou com a quebra de sigilo fiscal.

Apenas uma investigação criteriosa e livre das pressões políticas poderá esclarecer a autoria da violação de sigilo. É uma ação criminosa grave em qualquer circunstância. Trata-se de um abuso contra os direitos individuais de cada cidadão, cujos dados devem ser preservados pelos órgãos de Estado. É mais grave ainda no atual episódio por envolver a filha e aliados de um candidato à Presidência da República e por seus evidentes contornos eleitorais. Em casos semelhantes no passado, a atuação dos órgãos do Estado deixou a desejar. Apesar do escândalo em torno do caso dos aloprados na eleição presidencial de 2006, a origem do dinheiro ilegal usado na compra do dossiê nunca foi esclarecida pela Polícia Federal. Agora, a atuação das autoridades parece tentar blindar politicamente a candidata do PT, Dilma Rousseff, de possíveis prejuízos eleitorais do que esclarecer o episódio.

Desde que as primeiras ilegalidades contra o sigilo de Eduardo Jorge foram denunciadas, o secretário da Receita Federal, Otacílio Cartaxo, tentou evitar divulgar a extensão da devassa nos dados fiscais dos tucanos, perpetrada dentro das repartições públicas sob seu comando. Só depois que a Justiça autorizou Eduardo Jorge a obter acesso aos documentos da sindicância aberta pela Receita para apurar o caso, a violação dos sigilos da filha de Serra e dos outros tucanos ligados ao candidato se tornou pública. Criticado pelo comportamento vacilante até mesmo dentro do governo, Cartaxo está se segurando no cargo, apesar das clamorosas falhas do sistema de segurança dos dados da Receita. O Palácio do Planalto teme que sua demissão dê mais munição para a oposição.

Numa tentativa de tentar preservar Cartaxo e afastar o escândalo de Brasília, a Receita Federal decidiu também concentrar em São Paulo as informações sobre o caso. As investigações do órgão estão agora sob o comando do superintendente da Receita no Estado, José Guilherme Antunes de Vasconcelos, ex-inspetor chefe da Alfândega de Santos. Segundo apurou ÉPOCA, ele é tido como um servidor “bem articulado politicamente” e fazia parte do grupo próximo ao ex-secretário da Receita Jorge Rachid, que comandou o Fisco federal entre 2003 e 2008 e tem boa relação com o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci. Um dos investigados pela sindicância é o responsável pelo posto da Receita em Mauá, Julio Cezar Bertoldo.

Na semana passada, depois que a violação do sigilo da filha de Serra foi revelada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolveu também cobrar resultados da investigação da Polícia Federal, que vinha colhendo depoimentos sobre o caso desde o começo de julho. A declaração de Lula foi uma tentativa de reação política às cobranças dos tucanos, que acusam o governo de querer arrastar a investigação para que o escândalo não tenha efeito nas urnas.

Numa medida para pressionar a Polícia Federal a acelerar suas investigações e apontar culpados, a Polícia Civil de São Paulo, que está subordinada a um aliado de Serra, o governador de São Paulo, Alberto Goldman, anunciou, na sexta-feira passada, a abertura de um inquérito próprio para apurar o caso, sob o argumento de que o crime, apesar de envolver a violação de sigilos sob a guarda de um órgão federal, ocorreu na área de sua jurisdição.

A pressão dos tucanos não poupa nem mais Lula, que vinha sendo preservado de ataques. Serra afirmou ter alertado Lula em janeiro deste ano sobre a hipótese de Veronica ser alvo de investigações ilegais por causa de publicações feitas por blogueiros militantes da campanha de Dilma com insinuações sobre os negócios de sua filha. “Eu disse a ele (Lula) que havia uma armação contra familiares meus, inclusive no blog do Lula, no blog da Dilma, dos amigos do Lula. E que tinha inclusive elementos de quebra de sigilo. Eu estava preocupado e passei cópia para ele disso em janeiro. Mas só se confirmou a quebra agora. Eu suspeitava”, disse Serra ao portal iG.

Nessa campanha, Serra já colocou na propaganda eleitoral na TV imagens suas ao lado do presidente Lula na tentativa de neutralizar os efeitos da popularidade presidencial e impedir uma transferência de votos para Dilma. Não deu certo. A menos de um mês da eleição, as pesquisas mostram que a possibilidade de Dilma vencer a disputa logo no primeiro turno é alta. A descoberta da devassa ilegal nos dados fiscais de sua filha e de seus aliados deu a Serra uma oportunidade para abandonar a cautela e assumir uma postura de confronto com o governo.

Por causa da estratégia assumida no início da campanha e da complexidade do caso da violação do sigilo, é incerto que a decisão de explorar o episódio na campanha lhe renda mais votos. Mas essa é a cartada que Serra resolveu jogar para tentar chegar ao segundo turno.