A Defesa Impossível: Bolsonaro como o “Cliente Ruim” da Democracia 1

Há clientes que nenhum advogado, por mais hábil e combativo que seja, consegue defender. Talvez, com exceção irônica do genial Felipe Santa Cruz, que presidiu a OAB no triênio 2019-2022. 

Não por faltar recursos intelectuais e processuais, mas porque os fatos, a materialidade das provas e a gravidade qualificada dos atos transcendem qualquer técnica de arguição jurídica.

Jair Bolsonaro, condenado – definitivamente  – a 27 anos e 3 meses de prisão por liderar uma organização criminosa armada destinada a perpetrar um golpe de Estado, é precisamente esse tipo de cliente.

Um cliente ruim, com uma postura ruim e, como bem se aponta, com filhos que revelam a mesma incapacidade de compreender os limites éticos e legais que estruturam a convivência institucional.

O que torna a situação ainda mais paradigmática é a transmutação radical da posição jurídica: de um penalizador a réu, de um discurso punitivo de máxima severidade para uns, a um garantismo de ocasião para si próprio.

Essa hipocrisia não é acidental; é estrutural e reveladora de uma verdade incômoda que o sistema judicial brasileiro ainda reluta em nomear – e punir – com clareza: a seletividade penal como ferramenta de poder político.

A “Dupla Medida” do Rigor Penal

Durante seu governo, Bolsonaro construiu uma retórica da “guerra ao crime organizado”, codificada em discursos inflamados sobre “bandido bom é bandido morto”.

Essa linguagem não era mera exuberância retórica de um ex-delegado; era convocação a um direito penal do inimigo, a uma flexibilização radical das garantias processuais e humanas quando o alvo fosse aquele sujeito construído como inimigo permanente: o jovem pobre das periferias, o traficante favelado, o “suspeito padrão” do Brasil urbano.

Um Daniel Vorcaro, o pregador pentecostal que virou banqueiro, estaria imune a essa retórica.

Nesse contexto, a doutrina do “direito penal do inimigo” opera em sua forma mais crua: tolera-se a relativização de direitos fundamentais, penas desproporcionais, antecipação de tutela penal e encarceramento em massa sob o argumento de que o inimigo não merece as mesmas salvaguardas de um cidadão comum.

O pertencimento ao crime organizado, ainda que motivado pela absoluta carência de oportunidades de inclusão social , torna-se motivo não apenas para punição, mas para desumanização.

O crime da pobreza é tratado como terror que justifica exceção e execução.

Quando o Punitivista  Vira Réu

A inversão começa em novembro de 2022, quando a Polícia Federal descobre o que a história e a lógica já sugeriam: o planejamento detalhado de um golpe de Estado.

A “Operação Contragolpe” revela a existência do documento “Punhal Verde Amarelo”, um planejamento com características terroristas, elaborado por militares de alto escalão e impresso no Palácio do Planalto.

O documento previa o assassinato de candidatos eleitos, de ministro do STF e estabelecia os recursos humanos e bélicos necessários para sua execução.

O 8 de janeiro de 2023 não foi um evento banal, como bem salientou a ministra Cármen Lúcia.

Foi o ponto culminante de um processo golpista que começou assim que a urna falou diferente da vontade do homem de faixa.

Foi a materialização, ainda que truncada, de um ataque sistemático não apenas a eleições, mas aos próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito.

E aqui ocorre a metamorfose jurídica que deveria estarrecer qualquer observador atento: o mesmo campo político que exigia endurecimento máximo, que celebrava grupos de extermínio e que clamava por penas de morte para “bandidos”, passa agora a exigir para si um direito penal de manual suíço, garantista, humanitário, cheio de ressalvas procedimentais e presunções de inocência amplamente expandidas.

A defesa de Bolsonaro não é uma defesa no sentido jurídico clássico.

Não contesta os fatos com provas; não oferece narração alternativa fundamentada em evidências.

A defesa de Bolsonaro é achincalhe institucional puro. É ataque ao STF, à TSE, à PGR, à polícia. É afirmação de que as próprias instituições são perseguidoras, que o processo é instrumentalizado, que o sistema é uma farsa.

Trata-se, em essência, de uma estratégia de deslegitimação do tribunal que o julga.

Quando as provas são esmagadoras—minuta do golpe, reuniões com embaixadores para questionar resultados eleitorais, incitação a manifestações violentas de massa—não há técnica processual que resgue a situação.

Há apenas negação.

A Verdadeira Natureza Terrorista do Bolsonarismo   

Aqui reside o cerne da contradição que estrutura toda a análise: enquanto o Congresso discute a equiparação de organizações criminosas ligadas ao tráfico ao terrorismo, com aumento brutal de penas e endurecimento procedimental, as ações atribuídas a Bolsonaro e seu núcleo duro escapam dessa classificação quase por omissão institucional.

O traficante da favela, por mais violento que seja sua operação, age dentro de uma lógica de mercado ilícito, de disputa territorial por rotas de venda de drogas. Sua violência é instrumental; seu objetivo é lucro e poder local, não a abolição do Estado Democrático.

Diz a Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo) , em seu  “Art. 2º (…) provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.”

Com efeito , os atos de 8 de Janeiro e o planejamento do “Punhal Verde Amarelo” se enquadram perfeitamente nessa definição, pois visavam explicitamente provocar terror social e generalizado contra as instituições, expondo a paz pública a perigo extremo.

Bolsonaro e seus cúmplices, por sua vez, planejavam a execução de candidatos eleitos, a morte de ministro da Corte Suprema e a instauração de um regime de exceção.

Seus objetivos eram estruturalmente terroristas: quebrantar o pacto constitucional, eliminar alternância de poder, instituir-se como poder hegemônico irremovível.

Portanto, o verdadeiro “terrorismo” não é o do traficante favelado, mas o do golpista com patente militar  que opera a partir do Palácio do Planalto.

É a aplicação da definição mais precisa: terror com objetivo político, violência organizada contra as instituições democráticas, planejamento de assassinatos para fins de manutenção de poder.

Desumano é tratar traficante como terrorista enquanto se glorifica golpista violento como defensor da pátria.

Desumano é reivindicar endurecimento para uns e garantismo expandido para si. É a hipocrisia moralizada, a seletividade penal travestida de princípio.

Collor vs. Bolsonaro: Duas Espécies de Corrupção

A comparação com Fernando Collor, embora em superfície pareça estranha, revela a precisão da crítica.

Collor foi condenado pelo STF a 8 anos e 10 meses por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa. O ex-presidente vigarista desviou recursos públicos, recebeu propinas, operou esquemas de enriquecimento ilícito.

É corrupto de gabinete, corrupto tradicional, o vigarista que sempre foi.

Collor cumpre pena em regime domiciliar, com tornozeleira eletrônica. Seus movimentos são monitorados, suas visitas restritas.

Mas – e isso é crucial – Collor não representa perigo imediato contra o Estado de Direito.

Sua corrupção é parasitária, não destrutiva.

Ele roubava recursos, não intentava abolir o regime que permitia seu roubo.

Bolsonaro é algo qualitativamente diferente.

Além de envolvido em esquemas de vantagem indevida (investigação da caixa 2, desvios em segurança presidencial), ele é apontado pela PGR como líder de trama golpista, com apoio de grupos armados, discurso de ruptura institucional, tentativa de incitação de força armada à insubordinação.

Bolsonaro é o vigarista corrupto que também é assaltante à mão armada.

A diferença entre ambos é a diferença entre um parasita que suga  o corpo político e um predador que busca sua morte.

Collor em prisão domiciliar não ameaça a democracia; apenas a desonra.

Bolsonaro, ainda que preso, continua como organizador de resistência institucional, coordenador de negacionismo, símbolo móvel de recusa ao resultado das urnas.

Bolsonaro é, objetivamente, o inimigo público número um da democracia brasileira.

Uma Questão Civilizatória

A menção frequente à pena de morte não é gratuidade argumentativa. É contraste civilizatório.

A Constituição Federal de 1988, fruto de transição democrática e compromisso com direitos humanos, proíbe a pena de morte, admitindo-a apenas em caso de guerra declarada; entretanto uma exceção que permanece praticamente remota e inaplicável na vida institucional brasileira. Falta regulamentação , inclusive!

Essa escolha constitucional reflete uma postura: rejeição à vindicta capital, ao poder soberano de matar.

O Brasil elegeu o caminho da prisão, mesmo para crimes graves, mesmo para atentados à ordem constitucional.

Ocorre que esse caminho civilizatório é seletivo apenas quando convém à ordem. Para o traficante favelado, a brutalidade prisional é rotina; para o golpista de farda e gravata, há recursos, adiantamento de garantias, expansão de direitos processuais.

A questão, portanto, é demonstrar que o bolsonarismo exige rigor máximo para crimes de pobreza e garantismo estendido para crimes de poder.

Que instrumentaliza o sistema penal para esmagar inimigos socioeconômicos e poupa inimigos políticos internos. Que não reconhece nem respeita, para outrem, aquelas mesmas garantias que agora reivindica para si.

O Direito Penal da Direita Fundamentalista como Espelho da Desigualdade

O que está em jogo não é, portanto, um debate jurídico técnico sobre recursos processuais ou interpretação de normas.

O que está em jogo é a própria viabilidade do Estado de Direito quando confrontado com uma elite política que rejeita as bases do pacto democrático.

A defesa de Bolsonaro é impossível não porque seus advogados sejam incompetentes, mas porque os fatos são esmagadores e a posição é indefensável.

É impossível porque não se pode defender, racionalmente, aquele que buscou destruir racionalmente a ordem que permite sua defesa.

Nesse sentido, o caso Bolsonaro funciona como espelho cruel da seletividade estrutural do sistema penal brasileiro: direito penal máximo para a pobreza, direito penal mínimo para o poder.

Termos de prisão desproporcionais para o traficante, recursos infinitos para o golpista. Violência institucional contra o inimigo pobre, cuidados humanitários com o inimigo rico.

A democracia não sobrevive a essa contradição.

A lei, quando seletiva, deixa de ser lei; torna-se mera ferramenta de dominação.

E a justiça, quando desigual, deixa de ser justiça; torna-se apenas legitimação da força.

Bolsonaro é o cliente ruim que expõe, cruamente, a verdade que o sistema jurídico preferia manter velada: de que lado do espectro penal estão a clemência institucional e clemência institucional e de que lado estão as correntes.

O corrupto de gabinete recebe tornozeleira; o golpista armado deveria receber, no mínimo, o mesmo rigor que se aplica ao jovem favelado pego com um papelote de cocaína no bolso.

Se há algo que o Brasil deve aprender com esse episódio é que a seletividade penal não é um defeito do sistema—é seu modo de operação.

E enquanto essa verdade não for enfrentada com a mesma dureza com que se enfrenta o crime nas periferias, o Estado Democrático de Direito continuará sendo uma promessa não cumprida: garantista para quem pode, punitivo para quem não pode.

O cliente ruim, afinal, não é apenas Bolsonaro.

O cliente ruim também é uma democracia que tolera dois pesos e duas medidas, que pune com fúria os crimes da miséria e trata com deferência os crimes do poder.

Enquanto essa contradição for a regra, e não a exceção, nenhum advogado — por mais brilhante que seja — será capaz de defender o Brasil do seu mais perigoso inimigo: a sua própria e persistente desigualdade perante a lei.

Defender Bolsonaro nas circunstâncias atuais vai muito além de um mero erro de avaliação jurídica; configura uma desonestidade intelectual flagrante.

Sobretudo quando sua suposta “defesa” abandona qualquer fundamentação técnica para assumir a forma pura de vitimização, da narrativa de perseguição e do ataque indiscriminado ao STF, à Justiça Eleitoral e a todas as instituições que o responsabilizaram pela tentativa de golpe de Estado.

Quando governadores, como Tarcísio de Freitas , o vice-prefeito da cidade de São Paulo , Coronel Mello Araújo, desembargadores, oficiais superiores da PM , Delegados de Polícia , Promotores e falsos presbíteros se prestam a esse papel, deixam de atuar como defensores do Estado de Direito para se transformarem em cabos eleitorais de ocasião. Nesse processo, prostituem a função pública em busca de prestígio e dos votos das viúvas de um falso Messias.

O nível de descompromisso com a verdade e a ética nessa defesa é tão baixo que, para usar de ironia, nem no Enem suas teses escapariam da nota zero.