
A toga invisível e sem valor
Naquelas noites compridas de plantão, entre um flagrante e outro, dava tempo de sonhar ao som das máquinas Remington e Olivetti. Um café morno — trazido de casa com o lanchinho feito com carinho — no cantinho da mesa já carcomida pelo tempo, tão escura da tinta de identificação dactiloscópica e riscos de caneta quanto o céu sem estrelas.
Aquele céu sem estrelas seria a rotina de vida. E as manhãs cinzentas, mesmo quando o sol insistia em brilhar.
O delegado recém-ingressado — com ares de justiça e retidão — acreditava piamente que o salário era apenas um detalhe passageiro, que a vocação era fértil, as promoções viriam na velocidade da dedicação, e a carreira só conheceria degraus ascendentes.
Era o final da década de 1980. A Constituição tinha sido promulgada com dores, e o funcionalismo alimentava a esperança de que, enfim, o Estado pariria também um novo pacto civilizatório: justo, legalista, humanista.
Tola ilusão. Nem mesmo os diplomas e históricos escolares dos filhos, custeados com muito juro bancário, conseguiram ser isentos das manchas da frustração funcional, que só cresceriam ao longo dos anos.
Vieram os anos 90.
Depois do confisco o neoliberalismo de um lado, pistolas e privilégios do outro.
O delegado que antes se sonhava jurista passou a se contentar com o papel de digitador de auto de prisão, garçom de mandado judicial e babá de suspeitos presos.
Promoções por merecimento?
Apenas mito quando não se é “valoroso”!
Mérito ali era resistir aos vencimentos desidratados e às promessas eternamente adiadas no cabide do Palácio dos Bandeirantes.
Na virada dos anos 2000, o chicote do confisco previdenciário bateu forte. Servidores viram sua aposentadoria virar esmola disfarçada de benefício. O tempo de trabalho virou tempo de espera; a contribuição rendeu sacrifício sem retorno.
A esposa, dedicada ao lar e companheira de uma jornada sacrificada, passou a dividir angústias que antes a esperança conseguia esconder.
E os filhos? Ah, esses já sabiam que seguir a carreira policial era quase um gesto de inimizade com o próprio futuro.
Trinta e cinco anos se passaram.
O delegado, agora aposentado, não abre mais inquéritos, mas prossegue abrindo contas, boletos e revisando extratos com a precisão de perito contábil. E faz parte de grupos de outros aposentados — alguns até bem felizes com o Tarcísio.
Descobre, com amargura e algum sarcasmo, que passou parte relevante da vida servindo a um Estado que nunca o valorizou. Padrasto com os preferidos de sangue!
O patrimônio? Um apartamento financiado, avaliado em menos de R$ 500 mil, um carro discreto de R$ 50 mil e um saldo minguado de R$ 250 mil das economias mantidas a duras penas, como provas de um processo que jamais chegou a julgamento.
De valor, só lhe resta a aposentadoria; quando morrer, sua viúva mal terá o suficiente com a pensão. Não tem mais seguro de vida… pois já não tem mais dívidas bancárias. Até que enfim!
E, curiosamente, ainda que lhe digam que seus dias hoje são tranquilos, a consciência resta inquieta. A pureza dos primeiros anos, essa nem o confisco poupou.
E quando chegam perguntas – de jovens curiosos, estudantes, filhos de amigos – “Vale a pena ser delegado?”, ele apenas sorri de lado e responde com um eco do passado:
Vale!
Se for por não ter melhor opção.
Esqueça os delegados empresários e fazendeiros.
Para filhinho de papai sempre valerá a pena.
Para o resto, só ilusão.
Quantas vezes, em pesadelos recorrentes, se viu afogado em mar revolto…
Eram as cobranças por todos os lados, das quais não podia se livrar como se fossem apenas um sonho ruim.
Pior era saber-se afogado em seu próprio conflito.
Era tarde demais para recomeçar.