
Há uma tristeza cômica, quase orwelliana, em observar a democracia americana tropeçando nos próprios mitos.
Logo ela, berço do jazz, do blues, do rock e da pluralidade que Caetano Veloso um dia celebrou como responsável “por grande parte da alegria da humanidade”.
Mas eis que, na encruzilhada da história, a revolução dos bichos americana também se viu diante do dilema: quem liderará a granja da liberdade?
Orwell já nos alertara, com sua pena afiada, sobre o perigo de idealismos que viram tiranias.
Na Granja dos Bichos, a esperança de igualdade naufragou quando os próprios libertadores se tornaram opressores.
O porco Napoleão, símbolo do autoritarismo, expulsou o visionário Bola-de-Neve e, cercado de cães raivosos, instaurou o medo, a desinformação e a repressão.
O moinho foi construído, mas à custa do suor alheio, enquanto a promessa de liberdade se transformava em nova forma de servidão.
Na América, a democracia multicultural, forjada por séculos de lutas e encontros, também viu emergir seu Napoleão.
Escolheram, entre tantos, o pior porco para governar: aquele que, em vez de unir, dividiu; que, em vez de celebrar a mistura, semeou o medo e o ressentimento; que, em vez de ampliar direitos, os restringiu.
O discurso da liberdade foi sequestrado por quem só reconhece sua própria liberdade, negando a dos outros.
O velho mandamento da granja – “todos os animais são iguais” – foi, mais uma vez, reescrito à noite, à luz de velas, para “mas alguns são mais iguais que outros”.
E, no entanto, permanece inquebrantável o nosso carinho pelo povo americano.
Porque, apesar dos porcos e de seus cães de aluguel , é do povo – mestiço, vibrante, criativo – que brota a verdadeira grandeza dos Estados Unidos.
É do sofrimento dos negros escravizados que nasceu o blues; da resistência dos imigrantes , o jazz; da rebeldia dos jovens judeus, o folk e o rock.
É dessa cultura interracial, forjada na dor e na esperança, que veio grande parte da alegria existente na humanidade – e talvez toda a sua força de inovação e renovação.
De se ouvir : AMERICANOS , de Caetano.
Os porcos passam, mas a literatura , a arte e música ficam.
Os tiranos caem, mas a cultura resiste.
No fim, como no romance de Orwell, resta ao observador perceber que, por mais que os porcos tentem se parecer com homens, jamais conseguirão apagar a memória dos que sonharam com liberdade verdadeira.
Que o povo americano, com sua mistura indomável, continue a reinventar a alegria – apesar dos Napoleões de plantão.
Afinal, como nos ensina a história, por pior que seja o porco no comando, a granja só sobrevive pela esperança e pela criatividade dos seus bichos de todas as cores e credos.
E Harvey Milk – o combatente homossexual – foi mais uma vez assassinado.
Trump – the big orange pig – ordenou a retirada do nome de H. Bernard Milk (Judeu Litvak) que batiza um navio porta-aviões.
Propositadamente, às vésperas das comemorações do orgulho Gay.
Do Flit Paralisante: um brinde à cultura que resiste, e ao povo que, mesmo traído pelos seus porcos,segue produzindo alegria para o mundo inteiro.