JUSTIÇA GRAMATICAL? NÃO, JUSTIÇA DE JUÍZES QUE JAMAIS PRESIDIRAM AUDIÊNCIAS 1

Justiça gramatical

Claudio Weber Abramo

Imagine o eventual leitor que um agente da Polícia Federal de plantão em algum aeroporto brasileiro, num certo dia, receba um telefonema durante o qual alguém informe sobre a presença de um bombardeador suicida num avião que esteja prestes a decolar. Imagine ainda que, ao ser indagado sobre sua identidade, o denunciante decline de fornecê-la. Imagine também que, com base na informação recebida, o agente decida sustar a decolagem para averiguar a questão. Suponha, por fim, que a diligência resulte na confirmação da informação: o passageiro denunciado efetivamente veste um colete recheado com bananas de dinamite.

Pergunta-se: qual pode ser a consequência legal para o terrorista?

Resposta: nenhuma, ao menos segundo o entendimento do sr. Cesar Asfor Rocha, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Conforme o ministro, denúncias anônimas não podem motivar iniciativas de agentes públicos. O certo seria o policial nada fazer a respeito. Pior, uma vez que teria cometido um ato ilegal, o agente poderia sofrer punição administrativa e mesmo ser processado. Quanto ao terrorista, seria libertado com desculpas. Poderia ainda processar o policial federal por danos morais.

Essa, sem tirar nem pôr, foi a decisão de Asfor Rocha ao conceder liminar a mandado de segurança impetrado por investigados na Operação Castelo de Areia contra a própria existência da ação penal contra eles. Para o ministro, parte dos indícios de práticas de corrupção de que são acusados executivos da empresa Camargo Corrêa e que informam o processo decorrente da Castelo de Areia seria inválida, porque a denúncia original foi anônima.

É claro que a responsabilidade dos executivos em questão teria de ser confirmada judicialmente antes de se poder afirmar que eles, de fato, cometeram crimes de corrupção.

No entanto, caso a liminar concedida por Asfor Rocha não seja derrubada no STJ e se recursos posteriormente apresentados ao Supremo Tribunal Federal forem rejeitados, não haverá decisão judicial alguma, porque não haverá processo.

O caso do ministro-presidente do STJ é exemplar de um particular tipo de disfuncionalidades da Justiça brasileira – a tendência manifestada por muitos magistrados de considerarem que a Justiça não passa de um jogo de formalidades sem relação com a vida. Para eles, a literalidade dos textos legais é muito mais importante do que a administração de justiça. Não atentam para o fato de que, se as situações concretas levadas aos tribunais devessem sempre ser decididas por aplicação mecânica de dispositivos legais, então, não existiria justificativa para a existência de juízes. Máquinas poderiam cumprir a tarefa, o que, aliás, fariam melhor do que seres humanos, pois a vantagem das máquinas é fazerem sempre tudo do mesmo jeito.

Justiça é outra coisa. As leis não são formuladas como exercícios sintáticos destinados a tertúlias entre operadores do Direito, mas para enfrentar situações concretas. Os códigos legais refletem, no limite, as expectativas de justiça emanadas da sociedade.

É claro que as leis mudam muito mais devagar do que as aspirações sociais. Isso não é mau, pois é necessário proteger o arcabouço jurídico de mudanças intempestivas, que no longo prazo se podem revelar contraproducentes. De toda maneira, um dos motivos pelos quais juízes existem é abreviar a distância entre as leis e as expectativas da sociedade.

É claríssimo que a formulação constitucional que proíbe a denunciação anônima (e, por consequência, também proíbe ao Estado ocultar a identidade de denunciantes) é demasiado abrangente e anacrônica. A base desse preceito são relações privadas: uma pessoa física não pode sofrer processo (por exemplo, por danos materiais) movido por alguém que permaneça não identificado.

Não é de modo algum o caso de processos movidos por agentes do Estado, como são os promotores públicos. Estes não agem anonimamente.

Observe-se que as convenções internacionais de combate à corrupção de que o Brasil é signatário explicitam a necessidade de se montarem mecanismos de recepção de denúncias sem exigência de identificação do denunciante. Isso é muito importante para se obterem informações, principalmente, de agentes do Estado e de funcionários de empresas envolvidas em corrupção (ou de seus concorrentes, claro), os quais de outra forma se sentiriam justificadamente vulneráveis. Sem esse tipo de proteção a investigação de possíveis atos de corrupção de alto coturno se torna quase impossível.

Vários órgãos brasileiros aceitam denúncias anônimas, como, por exemplo, a Controladoria-Geral da União (CGU). No sítio da CGU na internet podem-se denunciar suspeitas de corrupção sem necessidade de identificação. A CGU processa internamente essas denúncias e quando considera serem, em tese, plausíveis abre processos de investigação. Faz isso de ofício, quer dizer, o procedimento é desencadeado pelos agentes do próprio órgão.

O mesmo acontece com os serviços de Disque-Denúncia, que se espalham com grande sucesso por vários Estados do País e têm sido responsáveis pela redução de certos tipos de crimes, como sequestros.

Se dependesse de Asfor Rocha, tudo isso seria considerado ilegal.

No caso em questão, é evidente que o ministro poderia ter ponderado que tanto a Polícia Federal quanto o Ministério Público agem de ofício, e que, portanto, a denúncia contra os réus da Camargo Corrêa não foi anônima.

Ao não reconhecê-lo, o ministro-presidente do STJ emite o sinal claríssimo de que, se depender dele e daqueles que pensam como ele, no Brasil a investigação de corrupção deve ficar restrita a casos triviais.

Claudio Weber Abramo, bacharel em Matemática e mestre em Lógica e Filosofia da Ciência, é diretor executivo da Transparência Brasil, organização não-governamental dedicada ao combate à corrupção no País.

fonte: O ESTADO
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Envolvimento com questões operacionais
 
Estudioso, com boa formação acadêmica e articulado, Cesar Asfor Rocha costuma ser lembrado quando se cogita de indicações técnicas para o Supremo Tribunal Federal. Trabalhou nos estudos de reformulação do Código Civil e escreveu um livro sobre a obra do jurista Miguel Reale. É um incentivador da cultura do Nordeste. Recebe bem os advogados e os atende sem restrições.
 
COMO INFLUENCIA AS DECISÔES — Bom argumentador, é eclético e influente na 4a Turma (Direito Privado) e na Corte Especial — em especial em matéria de Processo Civil e Direito Comercial. No Direito Sucessório tem produzido acórdãos paradigmáticos. É rigoroso em Matéria Penal. Abriu precedente ao dar liminar em processo ainda não julgado na Segunda Instância para evitar danos às partes.
 
ATRIBUTOS ESPECIAIS — Oriundo da advocacia, respeita a jurisprudência, mas não se prende a formalismos. Busca celeridade e presteza nos julgamentos. Com o gabinete sempre em dia, envolve-se com as questões operacionais do Superior Tribunal de Justiça e sempre se prontifica a resolver conflitos e trâmites administrativos.
 
Entre as causas de maior destaque que relatou está a que decidiu que poupança é uma relação de consumo, assegurando a aplicação do Código do Consumidor nos contratos bancários. No julgamento da ação, o ministro afirmou que o Código de Defesa é claro ao definir o que são consumidores e fornecedores de produtos e serviços, enquadrando nesses conceitos as instituições. Os titulares das cadernetas de poupança não pagam diretamente pelos depósitos efetuados, mas os bancos obtêm remuneração do próprio uso do dinheiro dos poupadores, aplicando livremente no mercado financeiro um percentual máximo determinado pelo Banco Central, repassando apenas parte do lucro.

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