03/12/2009 – 15h50
PM diz que polícia transforma cidadãos em homicidas; leia trecho de livro
“No nosso trabalho, cada um arranja um jeito de sobreviver. Na polícia não existe nada de bom. Tudo é teatro, farsa. A única coisa que realmente interessa é o vil metal, o dinheiro.” Esse é um dos relatos que o PM Rubens –nome fictício de um policial militar do Rio de Janeiro– apresenta no recém-lançado “Sangue Azul” (Geração Editorial, 2009), escrito pelo roteirista de cinema Leonardo Gudel.
Todo em primeira pessoa, o livro dá detalhes sórdidos dos bastidores da polícia, como o fato de que é “comum” pagar proprina dentro do próprio batalhão para conseguir benefícios como férias, munição extra e aposentadorias antecipadas. As declarações também revelam o susto e a indignação dos policiais novatos ao perceberem que os comandantes da polícia recebem dinheiro dos traficantes.
No trecho abaixo, selecionado pela Livraria da Folha, leia o início do primeiro capítulo do livro, que relata uma troca de tiros intensa entre traficantes e policiais, e a agonia de Rubens em tentar se manter escondido e imóvel para escapar da morte. Veja também o trecho inicial no qual o policial diz o porquê de não revelar seu nome verdadeiro e anuncia que, em pouco tempo, o carioca mal vai poder pôr o pé na rua.
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EU NÃO ME CHAMO RUBENS
É evidente que, para proteger as pessoas que participaram dos episódios descritos no livro, todos os seus nomes próprios foram alterados. Inclusive o meu, que não me chamo Rubens. Foram alterados também os nomes dos lugares. Misturamos a geografia da cidade para que nenhum evento ou participante possa ser identificado. Essa postura de proteger os envolvidos foi seguida por uma convicção minha. Nessas nossas vidas, dentro desse conflito, é difícil saber com certeza quem de fato é a vítima e quem é o agressor. Tudo que está escrito nas páginas abaixo são experiências vividas por mim e outros colegas durante meus anos como policial militar do Estado do Rio de Janeiro.
Há anos que eu quero fazer um livro sobre o que eu passei na polícia, mas nem sabia como começar. Através do roteirista de cinema Leonardo Gudel é que dei os meus primeiros passos. Redigi um pequeno texto, com umas vinte páginas, mas que já continha os pontos essenciais que eu queria abordar. Não sou um homem das palavras, tenho um dos trabalhos mais barra-pesada que existe. Após vários encontros, conversas no MSN, pelo telefone, seguindo fielmente o que eu lhe contei, o Leonardo transcreveu este pedaço da minha vida para o papel. Um pedaço amargo, mas que eu sinto o dever de transmitir. Sinto isto porque percebo em cada pessoa com quem converso que ela não tem a menor ideia do que está acontecendo no Rio de Janeiro. Estamos num estado de guerra. Os bandidos, junto com a polícia, criaram um poder paralelo que controla as favelas e as camadas mais pobres da sociedade. Eles estão cada vez mais armados e daqui a pouco a bomba vai estourar.
Daqui a pouco, o carioca mal vai poder pôr o pé na rua. Essa terra sem lei, onde o mais forte se impõe à base de tiro e bomba, existe ao lado de prédios de luxo na Zona Sul e por infinitos lugares na Zona Norte. Está na cara de todos, mas parece que as pessoas têm medo de enfrentar a realidade. Mas a minha história ainda vai além. Eu tento relatar o encontro entre esses dois mundos, esse encontro que aconteceu dentro de mim. É claro que eu já entrei na PM sabendo que lá não tem nenhum santo. Mas entrei com o intuito de servir e proteger. Achei que poderia fazer o meu serviço e me afastar dos maus policiais. Mas infelizmente, a realidade não é tão simples. Não existem bons e maus policiais.
Será que é possível imaginar como fica a cabeça de um sujeito que acaba de cometer, às vezes, mais de um assassinato? Que tem uma profissão em que é pago para matar? Que se encontra em situações em que é obrigado a matar uma criança para não morrer? Depois de passar por situações de uma brutalidade que esse sujeito nem pensava existir, como é a sua vida dentro de casa? Como é a relação dele com o seu filho pequeno? Não é mole não. São milhares de pessoas na mesma situação que eu passei. Pessoas doentes, mas sem nenhum amparo do Estado. O trabalho transforma esses cidadãos em homicidas. Essas pessoas, na sua maioria, nem percebem o quanto estão piradas. Este livro é para o povo carioca, para o Brasil acordar e enxergar o que está acontecendo. Não é fácil abrir os olhos para essa realidade. Tem que ter estômago para encarar estas páginas.
RUBENS
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QUEM MATOU MARINA?
Não posso mexer o meu rosto. Não posso mexer meio centímetro do meu corpo. Na hora não pensava em nada disso, era puro instinto. É estranho, de repente tudo parece estar contra mim. Até o meu próprio corpo quer me trair. Eu tenho que me segurar. Não posso me mexer. Minha boca está tão ressecada, que minha gengiva chega a colar nos lábios. A adrenalina faz o meu ângulo de visão ficar reduzido a menos de noventa graus. Não consigo saber direito o que se passa à minha volta. Só sei que não posso me mexer.
Era uma noite escura, sombria, barulhenta. Estava cercado de cheiros que me deixavam tonto. Sangue, churrasco, vômito. Às vezes eu tinha um relâmpago de consciência quando meus olhos conseguiam focalizar o relógio de pulso. Eu via que mais um minuto tinha se passado. Até o tempo está contra mim. Parece que eu estou parado nessa posição há horas. Mas, na verdade, não se passaram nem dois minutos. O tempo quer ficar congelado nesse inferno.
Ouço sons de tudo quanto é tipo. Explosões, rajadas de metralhadora, gritos. Nenhum deles me assusta. Só aquela música me fazia tremer. Um ritmo contínuo, mas que vai ficando cada vez mais alto. É ele que me obriga a ficar parado, estático. Eu já conheço bem o seu som, é um tiro de 7.62. Mas não é um tiro qualquer, é um disparo de alguém treinado. Tiro colocado, devagar, ritmado. Um depois do outro, vai cada vez mais se aproximando da minha cabeça. À medida que vou aprendendo a música, fico sabendo mais ou menos a frequência com que ele para e troca o carregador. É essa a minha hora de revidar. Minha guarnição avançou e eu fiquei guardando a retaguarda.
Os colegas conseguiram avançar, eu cumpri minha missão. Mas os vagabundos me cercaram. Vieram da parte baixa do morro. Tenho que segurar essa posição até a próxima guarnição chegar. Mas eu não faço isso por um ato de bravura militar. Se eu não contiver o avanço dos bandidos, eles me matam. Não tem como eu recuar. Se eu der um passo para trás, tomo tiro. Graças a Deus estou numa posição em que eles não conseguem me atingir. Mas eu também não Posso deixar que eles se movimentem, senão estou fudido. Os tiros chegam cada vez mais perto. Eu ouço o zunido estridente passar a poucos centímetros do meu ouvido. A dois dedos da minha testa, tiros estouram no bloco de concreto em que estou escorado. Sinto o impacto como uma paulada na minha cabeça.
Mas tenho que me segurar. Não posso me mexer. Meu rosto está todo branco por causa do reboco arrancado pelos tiros. Poeira branca e pedaços de concreto caem nos meus olhos. Mais um minuto se passou e nada do reforço chegar. Estou tomando uma chuva de tiro. É tiro pra caralho! Na posição que tenho de ficar, não dá nem para trocar o carregador. Tenho que economizar na munição. Dou um tiro de vez em quando. Não vou dizer que eu só atiro na boa porque na verdade eu não estou enxergando é porra nenhuma.
O tempo custa a passar. Devo estar a umas três horas agachado, encostado nessa parede. Olho para o relógio. Só passou meia hora! Cada minuto parece levar uma eternidade! Tudo bem que não se passaram três horas, mas mesmo na medição real do tempo, ser alvejado por trinta minutos sem poder mover um centímetro do corpo é coisa pra caralho. Os estouros no concreto vão ficando cada vez piores. O impacto que minha cabeça grudada na parede leva é Insuportável. Mas sei que se eu tirar a cabeça da parede eu morro. O concreto parece que está cada vez mais fino. O animal com a 7.62 está tentando demolir a parede a tiro. O cara viu que não consegue me atingir então resolveu acabar com o meu abrigo. O pior é que ele está conseguindo. Esse filho da puta é bom mesmo.
Tento dar mais um tiro. Não consigo, acabou minha munição. Pela primeira vez desde o começo dessa roubada minha cabeça voa para outro lugar. Penso no meu filho Serginho, na minha vida. Fudeu. Além de estar perdendo a concentração, já cansei de ouvir histórias de nego que antes de morrer vê a vida passar em flashback diante dos olhos. Porra, esse filme eu não quero ver agora não. Tento mudar de canal, voltar para o tiroteio. Eu não posso me mexer. Concentra! Estou vendo que isso vai dar merda. Ouço tiros vindo das minhas costas. Quero me virar, mas me seguro. Se eu me mexer vou acabar tomando um tiro no rosto. Mas e se forem os vagabundos chegando por trás? Aí é só esperar o Zé Maria me abraçar. Zé Maria é o apelido que nós damos para a morte. Para morte não, para o capeta. É ele que vem nos levar. Agora, por que Zé Maria, eu não sei.
Paro de ouvir os tiros passando perto do meu ouvido. Estou zonzo, será que fui atingido? Mas não estou sentindo nada. Uma mão pousa no meu ombro. Que alívio! Duvido que a mão do Zé Maria seja tão quente. Vejo coturnos e fardas azuis avançando à minha frente. A segunda guarnição chegou. Demorou, mas chegou. Os bandidos recuaram.
– Vamos embora, polícia! Rápido, porque o bicho tá pegando!
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“Sangue Azul”
Autor: Leonardo Gudel
Editora: Geração Editorial
Páginas: 332
Quanto: R$ 34,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha