
Disque M
Claudio Tognolli
Ponta do iceberg de um esquema de corrupção na SP dos anos 80, Miguelzinho do Detran já prendeu, foi preso e agora está soltando
Ouem, em sã consciência, ou talvez na mais insana inconsciência, poderia dotar de vivência e propriedade uma frase como “Prendi, fui preso e agora estou soltando”? Miguel da Silva Lima, 68 anos, o Miguelzinho do Detran, pode. Esse pequeno extrato de sabedoria faz parte de seu cotidiano: prendia sacripantas, esteve atrás das grades e agora solta acusados. “Nos anos 80, apareci na Veja, fui manchete de jornais, do Jornal Nacional”, diz, mordendo as palavras.
Sim: Miguelzinho do Detran era um ícone tão oitentista como balas Soft, The Police, Armação Ilimitada, Gang 90, Luiza Brunet, Atari e o Balão Mágico. Livre de sujeições, Miguelzinho é como Carlos Drummond de Andrade, que gostava de dividir sua vida em chambres séparées, um imóvel de três quartos bem distintos: maior que o mundo, menor que o mundo e igual ao mundo. Miguel retalha a vida também numa trindade: prendeu muita gente, repete, foi condenado a 14 anos de cadeia, mas só cumpriu 5; hoje, como advogado, “solto pessoas”, salienta. O Brasil, de memória fraca, provavelmente não se lembrará do caso de Miguelzinho. Sua história, porém, foi lição para outros funcionários públicos e políticos que vêm sugando cofres públicos e extorquindo o cidadão.
A prática, que hoje é conhecida e em algumas cidades ainda ignorada, foi inédita em 1980, quando o jornal O Estado de S.Paulo denunciou a máfia do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) na aprovação ilegal das carteiras de motorista. O esquema envolvia donos de auto-escolas e funcionários do Detran. À época, trabalhar no Detran era o emprego dos sonhos de qualquer policial ou funcionário público. Miguel da Silva Lima era um desses. Entrou pobre na carreira e em três anos empregado comprou duas fazendas e uma estância no interior de São Paulo, investiu em 100 cabeças de gado e ainda adquiriu quatro casas, uma caminhonete, um automóvel e um trator. Com um salário de Cr$ 18 mil (algo equivalente a R$ 2,5 mil atuais), ergue um patrimônio avaliado em Cr$ 30,9 milhões (em torno de R$ 1,25 milhões) no começo da década.
Como salário e patrimônio não se relacionavam de forma direta, começaram as investigações. Naturalmente que tal constatação surgiu apenas depois da série de reportagens publicadas pelo Estado de São Paulo (em uma delas, os repórteres conseguiram comprar uma habilitação de motorista profissional) e após as denúncias do coronel Sidney Palácios Gimenez, o chefe do Comando de Policiamento da Área Metropolitana da Zona Sul de São Paulo. Palácios, que passou meses investigando a corrupção do Detran e sua ligação com o jogo do bicho, recebeu ameaças e propostas de suborno. Sua resposta ficou conhecida na época: “Meu preço é a cabeça de todos os corruptos e marginais de São Paulo”. Não deu outra: foi eleito deputado estadual em 1982.
O caso provocou o interesse público também pelo fato de Miguelzinho ser um ex-pobre e ter tantas influências no governo. Cínico, o investigador relatou à época que era trabalhador e que “havia se instaurado uma campanha contra si”. Para se safar da prisão e não ter seus bens apreendidos, fez inúmeras manobras, como a apresentação de um sócio, o comerciante Rubens Pereira – “Era um agiota, nunca fui amigo dele, não tenho saudades dele, soube que já morreu”.
Em quase um ano de investigações e denúncias, Miguelzinho foi preso, solto e teve sua prisão decretada novamente, quando fugiu. A história do investigador que ficou rico à custa do Detran foi perdendo sua força ao longo dos meses e seus diversos desdobramentos foram ganhando apenas poucas linhas nos jornais, até o completo esquecimento
“Antes da revolução de 1964, só ladrão era nomeado para a polícia. Prestei concurso para investigador de polícia civil e entrei em 1967. Uma vez eu estava numa delegacia e mataram um humilde numa favela. Fiquei com sangue no olho para esclarecer aquele crime. Aí me brecaram, disseram: ‘Nem pense nisso, aqui não se investiga crime contra pobre’. Tive ali a minha lição do que poderia ser um policial, com raras exceções: não ligar para o pobre. Mas um dia, furtaram a casa de um português muito rico que morava atrás do 6o DP. Eu não acreditava no que via: o delegado pegou a máquina de escrever, o escrivão, os investigadores, montou uma unidade móvel e foi até a casa do português tomar depoimento. Levou toda a delegacia para lá para apurar um furto. Aí eu vi que não poderia levar o mundo a sério. Vi que o mundo é basicamente crime, mentira e fraude.”
Miguel recalcitra, mas já estamos no inferno. “Depois fui trabalhar no Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais). Lá, conheci pela primeira vez uma polícia séria, de melhor nível. Eu andava contrariado com algumas coisas que via. Por exemplo: na academia de polícia civil eu havia aprendido que tínhamos a obrigação de prender em flagrante qualquer um que fosse visto lendo ou carregando o livro O Capital, de Karl Marx. Era feita assim uma lavagem cerebral nos tiras. Eu finalmente fui trabalhar no temido Dops, onde estava o pessoal da tortura e do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Nunca me aproximei dele. Eu ficava de olheiro, disfarçado de funcionário da prefeitura, para ver a movimentação dos ‘aparelhos’ de esquerda. Um dia, fiz um trabalho de observar um grupo esquerdista. Os vi sendo presos pelo Dops, os rostos de todos eles. Dez dias depois, todos apareceram em jornal, televisão, revista. A mídia dizia que eles haviam ‘morrido trocando tiros com autoridades na Paraíba’. Aí aprendi que quase todos os que haviam morrido trocando tiros com autoridades, em outros estados, eram torturados e mortos em São Paulo, daí levados de avião para outros estados e desovados ali”, recorda. E continua: “Depois, fui emprestado por seis meses para o Pelotão de Investigações Criminais do Exército, o Pic. Vi que o Exército era muito mais limpo que o Dops, eles não usavam dementes e não enlameavam a instituição”.
Miguel, afinal, decidiu que queria ser delegado. Formou-se em direito em 1976, passou no exame pra delegado. Mas preferiu outro atalho.
“Sempre gostei de política, boa política. Então meu lugar na polícia tinha de ser o Detran. Fiquei lá de abril de 1978 a dezembro de 1980. Em 1978, o Paulo Maluf ganhou para governador de São Paulo. E eu não agüentava mais entrar em viatura. Fiquei muito amigo de um deputado do antigo MDB, chamado Leonel Julio. Tínhamos 63 deputados eleitos e o Maluf tinha com ele apenas 20 deputados desse grupo. Começou um processo de os malufistas quererem ter você a seu lado. Começou aí certamente o primeiro mensalinho da política brasileira, que passou batido. O Maluf negociou o Detran com seu antecessor, o governador Abreu Sodré, que havia informatizado aquilo. O governador Abreu Sodré era dono de 49% da Prodesp e 49% da Prodam, empresas que informatizavam a máquina do Estado. Eram contratos milionários esses. Um homem do Abreu Sodré, o Francisco Guimarães Nascimento, o Charutinho, virou o diretor do Detran sob o domínio de Maluf. Não havia contato direto entre eu, o Detran e Paulo Maluf, da mesma forma que hoje o Lula não mantém contato direto com ninguém, isso é uma estratégia política antiga, a de não manter contato. Queriam que eu arrecadasse para o Maluf, mas tudo era feito por meio da Assembléia Legislativa: eu mantinha contato com o deputado Armando Pinheiro, que mantinha contato com o fiel escudeiro do Paulo Maluf, o Calim Eid. No final das contas quem virou manchete e foi para a cadeia fui eu.”
Mas do que te acusavam? Como funcionava o lance do Detran? Miguel repele as acusações hoje perdidas na memória do povão, de que Miguelzinho do Detran fez fortuna sozinho, vendendo carteira de motorista sem a necessidade de passar pelo exame prático. “Passei 90 dias no presídio da Polícia Civil, em 1981. Fui condenado a 13 anos e 4 meses de cadeia, sob acusação de crime de concussão, que previa punição de 2 a 8 anos de cana. Fiquei preso 15 meses num negócio que parecia baia de cavalo, sem luz ou água. Minha acusação dizia que minhas 4 propriedades, em São Carlos e Descalvado (SP), de 150 alqueires cada, eram incompatíveis com o meu salário de investigador.” E eram. Suas propriedades rurais valiam, em valores atuais, aproximadamente R$ 1,5 milhão. “Estimo que o esquema do Detran tenha movimentado pelo menos 100 vezes esse valor, até quando fiquei preso. Era o esquema montado pelo Paulo Maluf governador”, diz.
Mas como era o golpe? “Basicamente, você obrigava as auto-escolas a comprarem simuladores para trânsito. Obviamente, era o lance de uma só empresa fazer esses simuladores, sem licitação. Depois veio o lance da auto-moto-escola: tinha de haver, por lei, um curso para guiar moto. As auto-escolas escolhiam caoticamente as motos, mas por lei o Estado dizia que deveria ser um determinado tipo de moto. Depois veio o negócio das plaquetas de moto, que deveriam ser da mesma marca.”
Trocando em miúdos: não havia ainda uma lei de licitações públicas. Somente a 21 de junho de 1993 o Brasil teria a sua, que diz, entre outras coisas, “admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato”. Os golpes no Detran eram justamente o contrário disso: obrigar auto-escolas a comprar, sem licitação, o que queriam os donos da máfia do Detran.
Miguel já está falando há horas. É figura elástica, acrobática. Sempre que mexe os olhos, isto é, sempre, a voz fica um pouquinho mais grave. Mas o tom vira tresnoitado, de bourbon, quando chega a pergunta inevitável: como foi prender, boa parte da vida, e de uma hora para outra ser preso? Neste momento, assume uma ginga ornitológica e pede para beber água e café. Na cozinha. “Me tiraram tudo quando entrei na cadeia. Naquele momento, pensei: tenho três alternativas. Posso me rebelar. Mas vi que não dava, porque estava preso numa masmorra em que eu só divisava o visor na porta de ferro na cela. A saída da violência era impraticável. Não sou violento. Vi que minha saída era administrar a situação. Pensei então que deveria ler como um louco, coisa que sempre fiz. Miguel tão legalista considera que, mesmo alegando ter cumprido pena em nome de pessoas mandadas por Paulo Maluf, apiedou-se do ex-governador quando a Polícia Federal o prendeu, no final de 2005, sob acusação de mandar para o exterior supostos US$ 200 milhões, oriundos de obras superfaturadas. “Fiquei revoltado ao ver Maluf preso. Isso foi uma canalhice sem tamanho. Foi uma vingança política. O artigo 312 do Código Penal não faculta que alguém fica preso dessa forma, preventivamente, sem que tenha provado a sua inocência.”
Miguel acha que o ex-governador ainda é (e será) vítima de persecutórias perquirições de cunho político. “Vou revelar algo: um ex-deputado, José Yunes, do então MDB, veio me visitar pouco antes de eu ser preso e ofereceu o seguinte: se eu denunciasse o Maluf como o chefão da Máfia do Detran, eu não seria preso e ainda poderia indicar alguém para uma secretaria estadual de governo.