A internet é sobretudo a ferramenta mais formidável para derrubar muros e fronteiras que enclausuram. Para os povos oprimidos, privados do direito de se exprimirem e decidirem seu futuro, a internet surge como um trunfo inesperado.

11/05/2010

Avanços e limites da internet vira questão de política internacional

Le Monde
Bernard Kouchner*

Em 2015, 3,5 bilhões de pessoas – ou seja, metade da humanidade – terão acesso à internet. Uma revolução para a liberdade de comunicação e de expressão. Mas como será usada essa nova mídia? Que novos abusos, que novas barreiras serão impostos pelos inimigos da internet?

As tecnologias modernas trazem o melhor e o pior. Os sites e blogs extremistas, racistas, difamatórios, divulgam em tempo real opiniões detestáveis. Eles fazem da internet uma ferramenta de guerra e de ódio. Sites são atacados, e internautas são recrutados em fóruns para projetos destruidores. Movimentos violentos são introduzidos nas redes sociais com fins de propaganda e desinformação.

É bem difícil para as democracias controlá-los. Não partilho da crença ingênua segundo a qual por mais eficiente e poderosa que seja uma nova tecnologia, por natureza, ela necessariamente fará a liberdade progredir em toda parte.

Mas de qualquer forma, esses abusos constituem a exceção. A internet é sobretudo a ferramenta mais formidável para derrubar muros e fronteiras que enclausuram. Para os povos oprimidos, privados do direito de se exprimirem e decidirem seu futuro, a internet surge como um trunfo inesperado. Uma informação anotada ou gravada em um telefone pode ser transmitida pelo espaço virtual em poucos minutos. É cada vez mais difícil esconder uma manifestação pública, um ato de repressão, um atentado aos direitos humanos.

Em países autoritários e repressivos, o telefone celular e a internet fazem nascer uma opinião pública e uma sociedade civil. Eles também dão aos cidadãos um instrumento de expressão essencial, apesar de todos os controles.

No entanto, a tentação de reprimir ainda está lá. O número de países que praticam a censura na internet, que vigiam e punem os internautas por crimes de opinião, aumenta em um ritmo preocupante. A internet pode se voltar contra o cidadão, tornar-se uma temível fonte de informação para rastrear a origem do opositor em potencial. Alguns regimes já estão se munindo de tecnologias de monitoramento cada vez mais sofisticadas.

Se todos aqueles que estão ligados aos direitos humanos e à democracia se recusarem a transigir com seus princípios e defenderem um espaço internet que garanta a liberdade de expressão, essa repressão se tornará mais difícil. Não falo de uma liberdade absoluta aberta a todos os abusos, que ninguém encoraja, mas da verdadeira liberdade, aquela que é fundamentada sobre o princípio do respeito à dignidade da pessoa e de seus direitos.

Há alguns anos, instituições multilaterais como o Conselho da Europa, ONGs como a Repórteres sem Fronteiras e milhares de indivíduos, por todo o mundo, vêm se engajando nessa questão. Prova de que a questão não opõe o Ocidente ao resto do mundo é que nada menos que 180 Estados reunidos na Cúpula Mundial sobre a Sociedade de Informação reconheceram a plena aplicabilidade na internet da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em especial do artigo 19 que estabelece a liberdade de expressão e de opinião. Entretanto, cerca de cinquenta Estados não respeitam esses compromissos.

Na ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, reuni esta semana jornalistas, diretores de ONGs, intelectuais, empresários e peritos. Essa troca reafirmou minha convicção de que estamos no caminho certo. Penso na criação de um instrumento que permitiria, em um nível internacional, seguir os compromissos assumidos pelos Estados, e interpelá-los quando faltarem com a palavra. Penso na ajuda aos ciberdissidentes, que devem receber o mesmo apoio que as outras vítimas de repressão política, e na necessidade de lhes manifestar publicamente nossa solidariedade em estreita coordenação com as ONGs que desenvolvem ações nesse sentido. Também acredito que é preciso refletir sobre a oportunidade de adotar um código de boa conduta para a exportação de tecnologias destinadas a censurar e rastrear internautas.

Esses caminhos, assim como outros – por exemplo, a proteção dos dados pessoais na internet, o direito ao esquecimento digital para todos promovido pela minha colega Nathalie Kosciusko-Morizet – devem ser buscados em um contexto que associa administrações, sociedades civis e especialistas internacionais.

Outro projeto significa muito para mim. Será demorado e difícil colocá-lo em prática, mas é essencial: dar uma tradução jurídica para a universalidade da internet, conferir-lhe um status que o aproxima de um espaço internacional, a fim de que seja mais difícil para os Estados repressivos utilizarem o argumento da soberania contra as liberdades fundamentais.

É muita coisa que está em jogo. Acredito que foi iniciada uma batalha de ideias: de um lado, os defensores de uma internet universal, aberta, fundamentada sobre a liberdade de expressão e de associação, sobre a tolerância e o respeito à vida privada; de outro, aqueles que gostariam de transformar a internet em uma variedade de espaços fechados e trancados a serviço de um regime, de uma propaganda e de todos os fanatismos.

A liberdade de expressão é a “base de todas as outras liberdades”. Sem ela, não há “nação livre”, dizia Voltaire. Esse espírito das Luzes, que é universal, deve soprar sobre as novas mídias. A defesa das liberdades fundamentais e dos direitos humanos deve se tornar a prioridade da governança da internet. Ela é de responsabilidade de todos.

*Bernard Kouchner, ministro das Relações Exteriores e Europeias.

Tradução: Lana Lim