HISTÓRIA DA POLÍCIA: PAI RICO, FILHO RICO: DELEGADOS FAMOSOS, FILHOS DELEGADOS VALOROSOS

Vida

ARQUIVO
Nestor

Jorge Napoleão Xavier

Nem todos os meninos temiam Nestor Mendes, que entrou um dia na cadeia da rua General Glicério, com ela se acostumou e nunca mais quis ir embora. Recusava-se a partir, esta é a minha casa, daqui não saio, daqui ninguém me tira. Os delegados Aldo Galeano, Everardo Tanganelli, Rubens Tucunduva, Ary Bauer, Vanderico de Arruda Moraes, Hélio Nico, Homero Honório Ferreira Júnior, Rubens Liberatori, Paulo Leite Pereira, Eurico José de Miranda e Carlos Eugenio Bitencourt compreenderam a pretensão, concordando que fosse ficando.

Dentes raros na boca, descalço, cabeça raspada, velhos trajes, varria o prédio e a calçada. A escada recebia um tratamento especial: por ali entravam e saíam o carcereiro Bráulio, os detetives Agenor, Leopoldo, Fatori e Milani, os escrivães Júlio Dias Pereira, Laudelino Nunes da Silva, Waldomiro Venâncio, Netinho, Mauá, Diógenes, Heitor e Edgard Batista, os soldados e os delegados.

De manhã e à tarde, recolhia e lavava as marmitas vazias: ia buscar o almoço e o jantar dos presos na pensão da rua Mato Grosso. Algumas vezes ao dia, levava e trazia a correspondência entre a cadeia e a delegacia. O serviço que fazia sozinho, a pé, agora é feito pelos agentes e investigadores.

Ao ir e ao voltar no mesmo trajeto, voltava e ia conversando de forma inaudível consigo mesmo: sem dúvida amigável, discreto e educado o soturno diálogo a um, porque não se ouvia nada do que falava, não se podendo afirmar que soubesse o que dizia ou que escutasse o que ouvia. Quando suas mãos gesticulavam, os dedos se batendo entre si, as crianças mais medrosas corriam, se escondiam; umas atiravam torrões de barro molhado da rua, pilheriavam: Genny daqueles tempos.

O silêncio de sua resposta às provocações combinava com a indiferença de seu olhar sem direção, sem rumo, sem lenço e sem documento. O descaso com que não reagia ao tratamento que lhe era dado, talvez fosse o sinal inteligente de sua cega, muda e surda vitória contra os moinhos de vento que o andar orgulhoso de louco domesticado pela força das leis dos homens carregava junto com as marmitas e os papéis da burocracia oficial.

O destino certamente riscara do dicionário secreto de Nestor o vocábulo medo, medo ético de enfrentar quem com que ele colidisse. O medo físico: que lesão maior que aquelas que a má sorte produziram poderia alguém causar-lhe? Achavam todos que fosse escravo? Enganavam-se: ele era senhor absoluto de seus passos, proprietário único de suas ocultas palavras, interlocutor andante de si próprio.

A maioria das crianças — ao enfrentar a marcha diária de Nestor — não se sentia alvo de uma agressão, de um disparate ou de uma insanidade de sua parte. Não havia o receio da violência das ruas, da violência estúpida e irracional, física e moral, que demonstra o inafastável parentesco humano com as raças animais mais atrasadas.

Nestor foi um louco manso, inofensivo. Os loucos de antigamente não eram como os loucos modernos: eram seres normais que transportavam marmitas e papéis, falando e ouvindo baixinho para não perturbar as outras pessoas que deles zombavam pelas ruas.

Jorge Napoleão Xavier é advogado, professor de Direito do UniToledo e membro do IBCCrim. Jornalista, escreve neste espaço às sextas-feiras.

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